28 de dez. de 2009

Mais amor que simpatias

Quando nascer outro ano
entre doze badaladas,
mergulhe já de mãos dadas
na vida, não no oceano.
No lugar dos três pulinhos,
dê três milhares de abraços,
e cubra de novos passos
os mesmos velhos caminhos.
Em vez dos ramos de flores
depositados nos mares,
jogue em todos os lugares
bons-dias e por-favores.
Em vez das taças de vinho
e dos pratos de lentilha,
leve porções de família
para quem está sozinho.
Em vez de palavras vazias
e rituais desgastados,
espalhe por todos os lados
mais amor que simpatias.
Não guarde no vão da carteira
poucas sementes já mortas,
mas plante sementes e portas
que durem a vida inteira.
Junte cada qual das peças
que ainda estão em colisão,
pois mais vale um só perdão
que milhares de promessas.
Sobretudo, o traje urgente
que cada um deve pôr:
uma roupa de qualquer cor
e um coração transparente.

23 de dez. de 2009

Os fantasmas dos Natais passados

Eles me assombram todos os anos, no dia 24 de dezembro. Vai chegando a noite e, junto dela, meus pais, meu irmão, meus tios, minha prima. A (parte mais próxima da) família em torno da mesa da sala de jantar, usada raramente durante o ano, mas sempre no Natal. Mãe estende uma toalha bonita, arruma os pratos, os talheres, traz a salada de bacalhau, o bolo de frango, o pudim de leite, as castanhas, nozes e avelãs. E começamos a ceia ainda no meio da novela.
Nossa árvore, pequena no tamanho, mas capaz de abrigar todos os presentes do mundo – e as lembranças deste ultramenino que vos escreve –, espera sua vez enquanto pisca-pisca. O som tocando baixinho as canções natalinas da Simone e do Ray Conniff. Então é Natal! Jingle bells, jingle bells, jingle all the way! Que seja feliz quem souber o que é o bem... Oh what fun it is to ride in a one-horse open sleigh!
Começa o especial da Xuxa, e a gente começa a trocar os presentes, um de cada vez, com direito a fotos e filme que quase nunca conferimos depois: Mãe presenteia Pai, eu presenteio o mano, Tia presenteia Tio, minha prima me presenteia, Mãe presenteia Tia, meu irmão presenteia Pai, e assim vamos nós por mais de uma hora, rindo, falando as mesmas bobagens do ano passado, dos anos passados... Até a última fotografia, todos amontoados sobre o sofá da sala, e a mesmíssima festa.
Como se perseguissem o velho Scrooge, esses fantasmas mais do que camaradas hão de me assombrar novamente no próximo dia 24. Eles não desistem; são tão reais quanto o Papai Noel (que existe e vem, se deixarmos o sapatinho na janela do coração). Sorte a minha que tenho sempre esse Natal “assombrado”, que nunca precisei pedir um mundo diferente – que sei bem o que é ganhar, embrulhada num presente, a felicidade.

21 de dez. de 2009

Delicatessen

Assim como os já manjados (com trocadilho, por favor) A festa de Babette, Como água para chocolate, Chocolate e Ratatouille, o atual Julie & Julia é sobre a alquimia do cozinhar. E, assim como todos os seus pares, Julie & Julia não é apenas sobre a alquimia do cozinhar – usando as artes da panela ora como símbolo, ora como colete salva-vidas em relação ao mundo cruel. O de praxe, o de sempre. Mas aquilo que, em A festa de Babette, era sinal de gratuidade e generosidade; que, em Como água para chocolate, era desafogo dos sentimentos recalcados; que, em Chocolate, era veículo de transformação social; e que, em Ratatouille, era demolição dos preconceitos – torna-se agora, no filme de Nora Ephron, a própria chance de realização pessoal. Uma luzinha no fim da pergunta “O que estou fazendo aqui?”. É um posto relativamente novo. Babette, Tita, Vianne e Remy, protagonistas dos outros filmes citados, simplesmente cozinham – têm esse dom sem grandes explicações e constroem suas histórias já contando com o talento prévio. Julie Powell e Julia Child, personagens-título do longa atual, aprendem a cozinhar – são suas histórias que as levam a construir, desenvolver e aperfeiçoar o dom, dando-lhe não mais o jeitinho de poder mágico, e sim de recheio e tempero dos dias. Eis que a alquimia se mostra como um fim, e não um meio (ou começo). Julie e Julia não são, a priori, perfeitas fadas da cozinha, embora tenham nascido com a semente; é a cozinha que, depois de muito frequentada e buscada, lhes dá o condão e as asas que não tinham em sua vida “pregressa”.
O fato de Julie e Julia não terem poderes mágicos, porém, não significa que Julie & Julia não os tenha. É uma daquelas guloseimas com selinho Wonka de qualidade, filme perfumado e generosamente saboroso como uma delicatessen em que se passeia, de propósito, para ficar com água na boca dos cheiros e paladares variados. Daquelas histórias onde não há nada que não deixe na língua um resíduo bom de biscoito amanteigado e baunilha. Para os profissionalmente desiludidos, serve de bandeja a comfort food de dois relatos de sucesso. Para os blogueiros desesperançados, o exemplo de uma iniciativa que acertou o ponto. Para os cozinheiros enrustidos, a pitadinha de coragem que acaba de encorpar o molho. Para os românticos (in)confessos, o açúcar de dois casamentos ultrafelizes (que, no entanto, não são capazes de diabeticar ninguém). Para os fãs de Meryl Streep, a diva em mais uma deliciosa composição de personagem, afetado na aparência, mas rigorosamente reconstituído. Para os neofãs de Amy Adams, a fofa cada vez mais fofa – cupcake que desmancha nos olhos de tão macio, mas na medida certa. Para qualquer cinéfilo de bom gosto, o petisco extra: mais um adorável Stanley Tucci na vasta galeria de adoráveis Stanley Tuccis, sempre roubando (justamente) algumas atençõezinhas do prato principal.
No momento em que todas as telas se voltam para o arrasa-quarteirão Avatar (que não deve ficar fora aqui do blog por muito tempo), veja Avatar, mas dê-se de sobremesa esta outra delícia de essência puramente natalina, familiar e quente como uma ceia repleta – e, como a ceia repleta, de resultado não totalmente perfeito, mas sinceramente feliz. Em meu humilde cardápio retroativo de 2009, é quitute já garantido entre os top ten. Bon appétit!

17 de dez. de 2009

Um show de rock’n’roll

Em meus 29 anos de vida, nunca tietei artista nenhum – mas devo confessar, sem medo de mentir, que o Roupa Nova me deixa perigosamente perto disso. Amor nascido numa infância de anos 80, por causa da irmã nove anos mais velha que quase furava os discos do grupo, de tanto os fazer girar, girar, girar, girar, girar, girar na antiga vitrola. Amor nascido de cada tema de novela, de cada nota que sabia o jeito e o lugar de acariciar os ouvidos, de tornar o mundo todo azul. Mas show dos meninos, que era bom, nunca tinha visto: era sempre longe demais, tarde demais, dia de semana demais, eu criança demais. Ou eu simplesmente andava meio desligada, desremunerada, e perdia a chance. A felicidade então nos sorriu, e o Fábio logo espalhou a novidade pelo ar: show do Roupa no Citibank Hall! Desta vez, tudo batia – cidade, idade, calendário, finanças... Agora sim, agora vai: hora de finalmente comprar o que a infância sonhou!...

Compramos: eu, Fábio e – claro – a irmã nove anos mais velha, que quase furava os discos do grupo (e hoje fura os CDs). O prometido repertório deste Roupa Nova em Londres era uma mistura das canções do novo álbum com aquelas que deliciaram gerações a fio. Prometido e cumprido com precisão britânica. Tudo começa com uma simpática animação dos meninos no telão, desfilando na terra da rainha. Já no palco, Paulinho e seu vozeirão abrem os trabalhos com “A cor do dinheiro”, reciclagem do sucesso “Correndo perigo”. Em seguida, ele e Serginho alternam as classiconas “Sapato velho” e “Linda demais” – nunca velhas, sempre lindas – e as carentes “Toma conta de mim” e “Volta pra mim” (o hino sagrado da dor-de-cotovelo music). Emoção à flor da pele. Ricardo Feghali adentra o palco com sua fofíssima guitarra cor-de-rosa da Hello Kitty. “Gostaram da guitarrinha? Tô muito viado com ela?”, ri o figuraça, convocando a participação do público em “Cantar faz feliz o coração”. Faz mesmo. Principalmente quando é Serginho quem canta, com sua voz de carinhar, um medley de delícias como “A viagem”, “Anjo”, “Sonho”, “Amar é”, “Seguindo no trem azul”, “Começo, meio e fim”... Mil motivos para amar Serginho – e gritar para todo mundo ouvir. Paulinho faz um solo de percussão e enche a casa de “Felicidade”. Ainda ao som de “Clarear”, tudo se apaga; iluminando-se apenas com uma lanterna, Nando discursa, ecologicamente, por um pouco de luz nessa vida. Mas falar é pouco pra quem quer mais. Após a dobradinha cardíaca “Coração da terra” e “Coração pirata”, o dueto virtual “Reacender”, as românticas “Mais feliz” e “A força do amor”, as agitadas “À flor da pele” e “Todas elas”, os indefectíveis acordes de “Dona” e a desesperada “Meu universo é você”, reúnem-se todos os roupas no palco, lado a lado. Bom sinal! Já é tempo de uma homenagem dos seis rapazes do Rio aos quatro de Liverpool. Perfeição absoluta, “She’s leaving home” nos rouba a respiração – algo assim transcendental.

... Que vira o maior carnaval. Quase no fim da festa, ao rock então o grupo (e a gente) se rendeu: Roupa Nova na veia, fazendo diferente o que mais ninguém faz. Somos convocados para a beira do palco – onde me materializo sem pestanejar. “Lança-perfume”, “Show de rock’n’roll” e “Whisky a go-go” nos viram de ponta-cabeça, nos fazem de gato e sapato; não dá pra ficar imune. A noite inteira passa num segundo, neste segundo, e os meninos se vão. Snif. Volta pra mim, Roupa, pra todos nós! Eles voltam, como que desafiando: do you wanna dance? E então atacam num medley furioso que vai de “Sweet child o’ mine” a “We are the champions”, passando por “Have you ever seen the rain”, “Stayin’ alive”, “Twist and shout”, “Satisfaction”, “We will rock you”... They do rock us, meus dedos tocam os de Paulinho e os de Nando, um autógrafo de Paulinho vem cair aos pés do Fábio. Sonho plenamente realizado, pacote ultracompleto (incluindo camiseta e pingente comprados na lojinha externa). E mais um item da wish list riscado com lápis de ouro – mas só até a próxima vez, porque o coração... já se apronta pra recomeçar. Sabe como é. Um sonho a mais não faz mal...

7 de dez. de 2009

Ensaio sobre a conveniência

Hoje decidi bancar a Martha Medeiros e escrever – escrever não, fi-lo-so-far – sobre nossa vidinha mais ou menos. Nada de cinema, tevê, música ou outro alucinógeno que faz a gente sonhar que vive numa galáxia muito, muito distante ou naquele Leblon que parece pertinho, mas não é. A vida nem sempre tem efeitos especiais, não é o tempo inteiro como um intervalo de margarina, muito menos toca suave 24 horas por dia como uma canção do Elton John.
Ok, ok, estou sendo radical. Há Spielbergs por aí com bons truques na manga, capazes de nos fazer acreditar no velho e surrado futuro da humanidade; há dias em que o margarina way of life parece real; e há até noites em que o Rocket Man cisma de fazer um show na Apoteose. Ainda bem. O mundo agradece.
Mas o ensaio aqui é sobre aqueles dias e noites em que nos achamos (quase) um lixo, quando temos um instante de lucidez e percebemos que as pessoas gostam da gente não exatamente pelo que somos, mas por aquilo que oferecemos. Como uma lojinha de conveniências, aquela que você visita depois da meia-noite só porque está precisando de um cigarro, de um salgadinho ou de umas pilhas.
Pense bem: sua sogra te “adora” porque você é “sensacional” ou porque você cai como uma luva no tipo de cônjuge com o qual ela sonhou para sua cria? Você está com seu/sua companheiro/a porque o/a admira ou porque ele/a se ajusta exatamente àquilo que você sempre imaginou ser o ideal para uma vida a dois, àquilo que lhe é mais... conveniente?
E a coisa se estende: você vota no candidato X porque ele promete podar as árvores do seu bairro ou porque ele promete cuidar de toda a cidade? Você torce pelo time Y porque é seu time do coração ou porque de fato merece ser o primeiro? Você se aproxima do sujeito Z porque te faz rir hoje, na mesinha do bar, ou porque te fará rir mais à frente, com um empurrãozinho no trabalho?
Essas perguntas parecem idiotas, provocam algumas respostas óbvias, e são tudo isso mesmo. A sogra adora o genro porque cai como uma luva no tipo de marido com o qual ela sonhou para sua filha. O rapaz gosta da moça porque a admira e ela se ajusta exatamente àquilo que ele sempre imaginou para uma vida a dois. Esse mesmo rapaz vota no candidato X porque ele prometeu podar as árvores do seu bairro (da sua rua, na verdade...), cujos galhos estavam invadindo sua janela. Ele torce pelo time Y porque é seu time do coração e, por isso, merece ser o primeiro – sempre. Ah, e ele se aproxima do sujeito Z porque sua vidinha mais ou menos estava de menos e precisava urgentemente de uma pitada de bom humor. Conveniente, não?

30 de nov. de 2009

Para quem acredita em vampiros

Não sou e nunca fui (embora não possa prometer que nunca serei) uma crepusculete, para usar a expressão do crítico Pablo Villaça. Ao contrário do que aconteceu com a saga do bruxinho de J. K. Rowling, integralmente lida e mastigada, vi os filmes crepusculares sem jamais ter me aproximado de um só volume da tetralogia de Stephenie Meyer. Medo de não gostar? qual nada: medo de gostar demais, de ser novamente absorvida por um universo do qual seria doloroso me despedir. Doloroso por motivos diferentes – que merecem parágrafo.
Enquanto o feitiço de Harry mora na criação de um mundo paralelo que existe de se pegar – lá fora, longe da gente –, o de Crepúsculo está “aqui mesmo”, como diria o ET de Spielberg, com o dedinho apontando para a cabeça. Crepúsculo e suas sequências têm o mesmo veneno de um Romeu e Julieta ou um Werther (guardadíssimas as devidas proporções literárias, é claro, já que ainda estou sã): oferecem não a fantasia, mas a projeção. Não uma simples brincadeira, e sim uma alternativa. Uma edição revista e ampliada de nós mesmos. Todos sabemos, por exemplo, que é impossível jogar quadribol ou voar em hipogrifos, e convivemos com isso perfeitamente. Salvo em caso de psicose, temos anticorpos naturais contra aquilo que nunca poderíamos ser. Mas nada nos defende daquilo que talvez pudéssemos ser. Nada nos defende do que pega a vida-nossa-de-cada-dia e a reproduz de maneira visceral, inebriante, hiperbólica. Em termos de amor, principalmente. Quem resiste ao desespero do pobre Werther ou dos amantes de Verona, essa urgência que aparentemente os isenta de qualquer outro laço, desejo, prioridade ou obrigação? essa fúria que lhes dá uma suposta carta branca para ignorar todos os raciocínios, um álibi para todos os impulsos, uma libertação de todas as escolhas? Infelizmente para nós, não queremos o amor propriamente dito: queremos um greencard, um visto permanente para a loucura, uma desculpa para a inconsciência. Soa melhor ser “obrigada” a enfrentar um clã de vampiros do que ter de estudar para a prova de Geografia.
Ok, Edward Cullen é um vampiro, o que teoricamente também joga a saga crepuscular para o domínio do fantástico. Mas o fato de Edward não ser humano é um mero detalhe: sua “vida” é a nossa vida, seu quintal é o nosso quintal. As questões de Harry Potter se resolvem em sua própria esfera, sem quase qualquer contato com o mundo trouxa – jedi moderno de uma galáxia muito distante. É um ícone sim, mas filosófico, como Hércules, Neo, Kal-El ou Luke Skywalker. Edward, porém, é um ícone de nosso mundo infinitamente particular, a remasterização do herói amoroso, o príncipe apaixonado que as mocinhas já teriam vergonha de sonhar na forma de um Montéquio, mas que desejam no corpo de um Cullen. Harry é a recriação de um mito; Edward é a atualização de um sonho. E é por isso que tenho fugido tanto de seus perigosos dentinhos.
Ao mesmo tempo, assistir a Lua nova no cinema traz a feliz constatação que o Fábio mencionou dois textos atrás: em um mundo acostumado a descrer de tudo, existe esperança em gerações suficientemente inocentes (no melhor sentido do termo) para suspirar pelo cavalheirismo à moda antiga, pela incondicionalidade do amor e até por – spoiler que provavelmente não spoilerá ninguém – um pedido de casamento. Para equilibrar a balança da autodestruição romântica, nada como sua nobreza mais encantadora – o que realmente me deixa, oitocentista tardia que sou, a um passo de ser transformada.

27 de nov. de 2009

Start

A notícia de que a Atari relançou seu website e, como estratégia para chamar a atenção do público, disponibilizou gratuitamente alguns de seus arcades mais clássicos, como Asteroids, Adventure e Battlezone, mexeu com a minha memória afetiva – esta superfantástica amiga, capaz de guardar de tudo um pouco sem reclamar da poeira e do acúmulo de bugigangas.
Verdade verdadeira, não me lembro desses jogos que a Atari resolveu ressuscitar depois de tantíssimos anos. Minha lembrança dos tempos em que a gente enchia a mão de calos tentando controlar o joystick começa com o Pac-Man, conhecido também pelo carinhoso apelido de Come-Come. Era difícil engolir todos os tracinhos da tela sem ser “consumido” pelos fantasminhas nada camaradas (ao som daquela trilha eletrônica que todo atariano há de se recordar).
Outro clássico das minhas férias (quando o tempo era inteirinho dedicado a bater recordes no mundo virtual) era o River Raid, com um aviãozinho que tinha de detonar aeronaves e navios inimigos sem se esquecer, claro, de reabastecer nas faixas vermelhas e brancas com a inscrição “fuel”. Até pontes eu derrubava! Com tiros hoje inofensivos, de pouquíssimos kilobytes...
Eu também não resistia às desventuras em série do Pitfall, no qual um rapazito vestido todo de verde tinha de encarar os maiores desafios numa floresta barra-pesada: buracos, troncos de árvore desgovernados, lagoas infestadas de jacarés, escorpiões e outros bichos. Era preciso coragem e talento de Indiana Jones para sobreviver a tantos perigos!
Muitas saudades desse planeta de traços simples e aventuras infinitas chamado Atari. Talvez o charme que hoje enxergamos nele – um charme retrô – esteja justamente no fato de ser ele apenas um esboço da “realidade”, um rascunho “malfeito” – mas não menos divertido – de mundos possíveis e impossíveis, em que podíamos imaginar com mais liberdade, sem a interferência de zilhões de gigabytes...
Ih, lá vem o fantasminha!... Game over.

21 de nov. de 2009

Para quem acredita em fantasmas

Faz uns dias fui ao cinema assistir à enésima adaptação do clássico Um conto de Natal, de Charles Dickens, desta vez com Robert Zemeckis na direção e Jim Carrey como o patinhas da vez, o “bom” e velho Ebenezer Scrooge. Gostei. Primeiro porque não tentaram reinventar a árvore de Natal. Embora tenham utilizado as técnicas mais avançadas de animação (inclusive 3-D), as inovações param por aí. O filme segue passo a passo as linhas deixadas pelo escritor inglês − sem medo de, num mundo tão material e cínico, parecer ingênuo ou mesmo bobo.
E é aqui que mora a segunda razão, que ainda é um pouco da primeira, por que gostei de Os fantasmas de Scrooge (dispensável novo título dado a essa “nova” versão de A Christmas Carol): o espírito do original − com trocadilho, claro − foi mantido. Não se procurou relativizar ou suavizar as ideias moralistas de Dickens: estão lá o Scrooge antes dos fantasmas − avarento, mesquinho, cruel e que não suporta jingle bells, nozes e avelãs − e o Scrooge depois dos fantasmas − inacreditavelmente arrependido de suas vilanias, magicamente tocado por sentimentos de bondade e generosidade. Um homem renascido de suas cinzas.
Mas... e a digníssima plateia? Como reagiu diante de um final tão feliz, tão "convencional", tão “ingênuo”, tão “bobo”? Como um sujeito que esqueceu os bons valores (e hoje seria comparável a um ricaço apenas preocupado com os valores da bolsa de Nova Iorque) pode se transformar da noite para o dia; e mais, graças à visita de três fantasminhas “camaradas”? Lucros e dividendos à parte, o fato é que o público − na maioria crianças − comprou a ideia e aplaudiu com entusiasmo ao término da projeção. Ok, ok, isso pode parecer pouco, quase nada; mas, num mundo pós-Shrek, acostumado a "rir" dos contos de fada e fantasma, já é muito. Acredite.

15 de nov. de 2009

Cilada

Pobre amigo. Foi convidado para ser padrinho de casamento. Ok, o convite veio de uma amiga muito querida, e o leitor dirá que é uma honra (e é mesmo). Bom, isso até a página dois. O rapaz tinha acabado de comprar roupa nova, daquelas para casamento e festas afins. Só que a camisa escura e a calça cinza, suficientemente caras, vão continuar no armário. Porque, para o casório da amiga, o uniforme é terno preto. Que puxa!
Mas os gastos não param no provável aluguel do traje de gala. Tem o presente. O famigerado presente dos padrinhos. Uma geladeira duplex, um fogão de seis bocas, um LCD de 42 polegadas? Sorte dele, a noiva já mobiliou a casa e, portanto, não deve estar precisando de “utensílios” tão grandes. Ufa, ufíssima! De qualquer maneira, essa é uma conta que se divide com a madrinha, que, não por coincidência, é sua namorada – e está em apuros bem maiores. Por causa do vestido longo (que, de tão longo, merece um parágrafo só pra ele).
Pois é, o incrível caso do vestido longo. Onde encontrar um vestido longo para uma madrinha curta, digo, baixinha? Nessas lojinhas de aluguel que “decoram” nossos shoppings? Se a festa fosse à fantasia, ok, seria possível achar alguma coisa ali. Se fosse uma festa mais moderninha, informal, dessas em que os convidados recriam os zumbis de Thriller, dançam para a câmera e, no dia seguinte, para os milhões de usuários do Youtube, quem sabe. Mas não é o caso nem a ocasião – e a cruzada pelo Santo Vestido Longo continua...
Outra busca dificílima e longa, quase tão longa quanto o vestido da madrinha, é a canção que embalará a entrada dos padrinhos na cerimônia religiosa. Nesse quesito, a noiva é moderninha – o que tem tirado o justo sono do meu amigo e da sua namorada. Que “homenagem amiga”, guardada a sete chaves, estará reservada para eles quando pisarem o tapete vermelho? “Amigos para sempre”, “Canção da América”?...
É, amigo, a situação é delicada, eu sei (e agora os meus leitores sabem também); por isso, vou acender umas velas, comprar umas rosas bem bonitas, botar uma roupinha melhor, chamar um coral de meia dúzia de amigos do peito, de fé, irmãos camaradas (a Julia Roberts e a Cameron Diaz não estavam disponíveis, infelizmente), e say a little prayer for you...

11 de nov. de 2009

Já dizia o profeta

13 de novembro é o Dia Mundial da Gentileza. Se fosse cumprida à risca, pra valer mesmo, essa data substituiria uma cambada de outras comemorações. Claro que é fantástico ter uma penca de festividades ao longo do ano (adoro), mas seria ainda mais perfeito e civilizado não ter sequer a necessidade delas. Se o Dia da Gentileza fosse tão, mas tão sério que se estendesse pelos outros 364 dias (como é a proposta), qual o sentido de haver um quadradinho específico, na folhinha, para lembrar os filhos distraídos de ligar para suas mães – ou pais? Não haveria, afinal, qualquer mãe (ou pai) negligenciada(o) neste mundo, pois a gratidão é uma gentileza retrospectiva. Pra que um dia exclusivo de beijos e abraços namorados, se os casais abririam na agenda romances espontâneos, presentes just because, surpresas diárias? O amor nada mais é, ora bolas, do que uma gentileza persistente, criativa e criadora. Qual o propósito de um dia único para as mulheres, se em cada um deles os homens seriam corteses como Lancelot (e, mais do que corteses, justos – porque a justiça é uma gentileza social)? Até aniversários ficariam praticamente obsoletos, já que gentileza é a própria celebração do outro; é um parabéns contínuo, um “bem-vindo” cotidiano, um “você merece!” constante. Mesmo que, de vez em quando, não se mereça tanto assim.
Ninguém ache que acredito em pollyannices. Um mundo assim irretocável não brotaria, prontinho, entre uma dormida e uma acordada – cruzamento de uma epifania celeste com um “X” no calendário. Gentileza é músculo invisível do corpo: tem que exercitar. Sua ativação não é espontânea, como não é espontâneo o endurecimento do bíceps, tríceps ou coxas. Não é fruto de sentimento, e sim de decisão. Se fruto de sentimento fosse, estariam abonadas todas as grosserias feitas àqueles que não (ou que mal) conhecemos, que não amamos, de quem sequer gostamos. Estaria perdoada toda estupidez passional cometida nos dias em que sobra perrengue e falta estrogênio (ah, as meninas sabemos como é crucial essa falta). Nada; gentileza é filha de muita malhação, de disciplina similar à que se tem na academia. É agir que independe do sentir. Nosso adorável profeta dizia, corretissimamente, que gentileza gera gentileza. Pois a máxima não se aplica somente à reação alheia: quanto mais aquecemos o músculo da gentileza, tanto mais fácil também se torna, para nós, colocá-lo de novo em prática. Quanto menos o usamos, mais ele se atrofia e mais nos “ursamos”. Árduo, mas real: ser gentil é a única coisa que pode atenuar o esforço de ser gentil, assim como o costume com a carga mais baixa de um exercício físico é o que nos permite passar para a próxima.
Se amor é uma gentileza persistente, gentileza é um amor proposital. A gratuidade de se transbordar e adivinhar o outro. Vai além, muito além de “bons-dias” e “com-licenças” mecânicos: exige a delicadeza de prever (por exemplo, posicionar-se na escada rolante de modo a não barrar o trânsito dos mais apressados; não demorar vinte minutos no caixa eletrônico) e a delicadeza de aceitar (não bufar ruidosamente, digamos, se a senhorinha à frente demorar vinte e seis minutos no caixa eletrônico). Difícil? ninguém disse que era moleza, sobretudo nos dias em que saímos de casa sedentos de voltar com algum escalpo, qualquer um. Mas não é preciso ser aquele que sai munido da tinta mais pollyannamente cor-de-rosa, se ela não lhe assenta: cada um colore o dia do seu jeito, cada um é gentil numa cor. Desde que se seja a mão que produz a beleza, e não aquela – como a que apagou as inscrições no Viaduto do Caju – que a atropela e destrói em nome de uma suposta “ordem” ou “eficiência”, pintando o dia inteiro de cinza. Um cinzinha nada básico.

31 de out. de 2009

Os outros

Pode-se não gostar de um filme e achá-lo muito bom ao mesmo tempo. Isso foi o que concluí ao assistir a Distrito 9 (produção mais recente de Peter Senhor dos anéis Jackson), por insistência do Fábio, que já namorava o longa há algumas semanas. Não é para estômagos de sangue quente, e por isso não posso dizer que achei propriamente uma delícia a experiência sensorial – embora no roteiro, nos efeitos, na inovação e na coragem a produção seja, sem dúvida, impecável. Seus primeiros trinta, quarenta minutos se aproveitam de nossa nobreza ao mostrarem uma “favela alienígena” no esplendor de seu asco: criaturas repulsivas, barracos nojentos, vacas mortas dependuradas servindo de “berçário” a ovos de ETs, imagens quase fétidas, o horror, o horror. Tudo isso seguido pelas reações físicas não menos desagradáveis que Wikus Van De Merwe (o protagonista “humano”) tem ao se contaminar com o fluido alienígena. A partir daí, vencidas as primeiras náuseas, o filme engrena bonito. Não que haja réstia de beleza nas cenas áridas e violentas, e sim na habilidade fantástica com que se misturam ação, perseguição, documentário, ficção científica, política, heroísmo e denúncia social, numa história que encarna um perfeito mestiço de Cidade de Deus com A bruxa de Blair e A mosca.
Mestiçagem, por sinal, é a alma do filme. Não apenas seu formato representa a fusão de vários gêneros (tão bem tecida que não notamos o privilégio de um ou outro): seu conteúdo é um grito pela miscigenação dos pensamentos, dos quereres. Numa proposta subentendida, não há meio de compreendermos e respeitarmos o alheio sem, de certa forma, nos misturarmos a ele – emprestando um pouco de sua vida à nossa vida, de seus olhos aos nossos olhos. Propositalmente, Distrito 9 nos leva a detestar os ETs enquanto Wikus Van De Merwe é 100% terráqueo, e simpatizar com eles quando o protagonista começa a se tornar fisicamente igual aos “camarões” (nome pejorativo dado aos aliens) e a procurar abrigo no mesmo gueto que antes destruía. Wikus nunca é tão plenamente humano como quando seu DNA já é, em grande parte, alienígena, uma vez que a vivência do perseguido resgata nele a empatia que deveria nos definir por essência. Também de propósito, e em contraste com a situação de Wikus, estão representadas na história diversas maneiras (anti)“humanas” de ser em relação ao outro: a destruição do diferente por razões “científicas” (como nas antigas experiências nazistas), a exploração comercial, a devoração literal das qualidades alheias (encarnada pela gangue nigeriana liderada por Obesandjo, que pratica “alienfagia”). E, para reforçar a ideologia antipreconceito nem tão subliminar, o cenário escolhido para o estacionamento da nave-mãe dos ETs (e para a criação do Distrito 9) não é Nova Iorque, Washington ou qualquer outro top ten de filme-catástrofe, e sim Johannesburgo, na África do Sul – terra que ainda manca pelas sequelas do apartheid.
Distrito 9 nos causa repulsa, sim; mas a aversão física que abre o longa se esvai, para dar lugar ao nojo social. De nós mesmos. De como o sentimento que nos leva a proteger nossa espécie pode nos transformar em uma outra – no mau sentido. De como a genética que nos distingue pode, facilmente, servir de pretexto à frieza que nos nega. De como jogamos fora, em nome daquilo que nos humaniza visualmente, aquilo que nos humaniza efetivamente – e que é tão essencial quanto (para lembrar a velha raposa do Pequeno príncipe) invisível aos olhos. De como nós também podemos ser o inferno dos outros.

25 de out. de 2009

Tarantinamente calculado

O típico close no pezinho de alguma mulher, o tema da vingança, a violência brutalmente desenhada e friamente executada, a femme-fatale vestida e maquiada para matar, os diálogos loooooooongos e afiadíssimos, como faca só lâmina, facas só lâmina, revólveres, armas, trabucos, tiros, a cena em que todos se matam, os do bem, os do mal, os coadjuvantes, os figurantes, o sangue, o vermelho, cabeças escalpeladas, a música grandiloquente, morriconeana, que transforma a vida e todo o resto num velho-oeste clássico-trash, as infinitas homenagens ao cinema e as piadinhas metalinguísticas (ambas nos gritando a todo o momento que estamos “apenas” diante da telona, na sala escura, com som surround nos ouvidos e um saco de pipoca amanteigada nas mãos), a história que se faz estória, sem medo nem pudor de envergar um era-uma-vez no início, sem nenhuma gota de constrangimento ao se lixar para os Fatos, para a Verdade (já empoeirada pelo tempo e por tantos outros filmes sobre a Segunda Guerra Mundial), com toda a coragem e umas pitadas de arrogância ao imaginar um caminho delirantemente alternativo, repleto de atalhos (in)críveis, em que judeus são tão cruéis e bárbaros quantos os nazistas, em que os personagens são feitos de papelão e negativo (substância altamente inflamável, aliás), em que Brad Pitt encarna um tenente de sotaque tão divertidamente canastrão quanto improvavelmente verossímil e Christoph Waltz vive um coronel da SS ao mesmo take gentleman e carrasco, um vilãozão até a última raiz do celuloide, capaz de beber leite fresquinho antes de eliminar sem dó nem piedade os “ratos” da casa...
Tudo isso regado a muitíssima pretensão, a uma – saudável – falta de modéstia, a galões de ironia e cinismo, a doses perigosamente exageradas de estilo e autoritarismo faz de Bastardos inglórios um legítimo Quentin Tarantino, um filme que, no frigir dos strudels, vale o Hitler que manda pelos ares.

18 de out. de 2009

Páginas da vida

A novíssima Helena de Manoel Carlos tem me irritado um bocado. É boa filha, boa irmã, boa esposa, boa amiga, modelo de perfeição e profissão (é a top top das passarelas do Brasil e do mundo). Ou seja, Helena não é deste planeta. É do Leblon. E um pouco de Búzios também, aquela praia da Brigitte Bardot. Talvez a única “fraqueza” da moça até aqui, se é que isso é uma fraqueza, tenha sido cair na conversa do José Mayer, “maldição” por que quase todas as Helenas têm de passar...
Ainda bem que, no mundo maravilhoso de Maneco, para cada Helena existe uma Tereza – cheia de humanidade, com qualidades e defeitos, perfeita na sua imperfeição, irresistivelmente de carne, osso e elegância. A tiracolo, a filha Luciana, com jeito de boneca mimada, mas olhos que guardam uma insegurança de quem tateia a vida, de quem é menina demais, de quem sonha com Paris, Nova Iorque, Milão sem dar conta de sua “pequena” avenida Delfim Moreira.
Pequena no tamanho, grande na esperteza é a estrelinha Rafaela, que manipula a mãe (Dora) e quem mais estiver à sua volta. Que ministérios públicos, varas de infância e juízes – preocupadíssimos com o desenvolvimento de nossas crianças de folhetim – não atrapalhem a trajetória de uma personagem que tem tudo para aquecer as águas ainda mornas das praias de Viver a vida. (Pois é: o Ministério Público do Trabalho daqui do Rio, que não deve ter mais o que fazer, notificou Maneco por conta do papel da atriz Klara Castanho, de oito anos. A “recomendação” solicita que o autor tome cuidado com o tipo de personagem designado a atores com menos de 18 anos...).
Voltando à turma com mais de 18, vale aqui outra notificação (última, prometo): aos gêmeos Jorge e Miguel, capazes de nos fazer crer na existência de dois Mateus Solanos. O rapaz (ou rapazes, vai saber), que já tinha ofuscado até os olhos de Maysa, agora brilha na pele de um arquiteto sério, sisudo, cabelo penteado e de um médico de bem com a vida, com o cabelo despenteado e com a namorada do irmão... Ah, só mais uma “recomendação” pro nosso Maneco: manda logo o Jorge pro Canadá! Com passagem só de ida, claro...

12 de out. de 2009

Reinações do narizinho

Dizem por aí, poética e cientificamente, que o olfato é o sentido mais ligado à memória. Acredito. Se cruzo na rua com algum perfume que já andou frequentando minha vida, é um embarque imediato para as mesmas sensações da época em questão. A lembrança vem inteirinha na boca (como aquelas frases que a gente prepara na cabeça, mas não diz: ficam penduradas na língua). Tem melhor gatilho para um pensamento antigo do que um perfume? Pois hoje, Dia das Crianças, é dia de pensamentos antigos. Não “antigos” de obsoletos e embolorados, pelo contrário: “antigos” de misteriosamente mágicos, como livros que narram nossa própria mitologia. Nossa história particular não está nos álbuns de fotos que guardamos na gaveta, palpáveis e visíveis. Está no álbum de pensamentos que montamos a vida inteira, tão imaterial e flutuante quanto os cheiros queridos que nos ajudam a folheá-lo.
Meu álbum de infância, por exemplo, tem o cheiro das provas e trabalhos de escola rodados no mimeógrafo, cheiro forte do álcool, da tinta roxinha. Minha infância tem cheiro de bolo assando na cozinha de Vó (portas fechadas, talvez para eu não o atacar antes da hora). Dos buquês de jasmim jasminando no quintal (boêmios, durante a noite). Do azeite e da cerveja de Pai almoçando em casa. Da acetona de minha irmã fazendo a unha. Do Acqua Fresca que ela usava. Do Poison (po-a-zom, à moda francesa) que Mãe e Vó usavam. De sereno – entidade misteriosa até hoje. Dos cavalinhos da praça aonde Mãe me levava todo domingo. Do plástico adocicado das bonecas. Da alfazema que se espalhava no apartamento da primeira professora de teclado. Do ar molhado pelo umidificador de ambiente. Do ar mofado do hotel onde nos hospedávamos em São Paulo. Das aulas de arte da quinta série, coloridas de tinta. Das aulas de natação sei lá de que ano, ardidas de cloro. Do xampu Johnson & Johnson, que “não ardia” na vista. Dos livros de Monteiro Lobato que tinham sido de Mãe. Dos livros de Monteiro Lobato novinhos da loja. Das capas dos elepês. Do Colubiazol, remédio de garganta cor de ferrugem que sujava TUDO num raio de cinco quilômetros. De bacalhau sendo preparado e empesteando a casa, para meu desespero. De geleia de mocotó Inbasa, sonho de doce de leite e pirulito de morango. Das revistinhas que Mãe comprava às dúzias no jornaleiro. Das broinhas no lanche da tarde, enquanto passava ZY Bem Bom na Bandeirantes. Das minhas tias-avós. De chuva, de terra, de uma na outra. De tantas pequenices. De tantos etcéteras.
É claro que cada narizito deste mundo terá seu próprio repertório de etcéteras e pequenices, mas todos, nos feudos de memória, reinam. Reinam no sentido lobatiano da travessura (quantas vezes terão se metido onde não eram chamados, como o meu – guloso do bolo – na cozinha de Vó?) e no sentido monárquico do comando. Sim, o gosto de cada guloseima antiga também é importante – mas aí é só o mesmo olfato trabalhando em outro escritório. Tanto os aromas dominam as lembranças e a elas se confundem que ouso duvidar até de Shakespeare, quando, pela boca de Julieta, dá a entender que a rosa teria o mesmo perfume se fosse batizada com outro nome. Qual nada. A rosa não tem o mesmo perfume nem sendo rosa. Para cada um ela será diferente; cada um a registrará diferente em seu catálogo de vida. Ser, não ser, é tudo uma questão de qual narizinho está no comando do olho curioso, do ouvido xereta. É só com seu aval de rei que uma lembrança pode ser embrulhada sempre num sorriso feliz.

6 de out. de 2009

Há algo de bom no reino da Dinamarca

Há algo de bom em saber que a cidade onde vivo vai receber as Olimpíadas, em escutar aquele gringo ler gringamente “Rio de Janeiro”, em explodir de alegria com meu pai e minha mãe como se fosse gol do Vasco em final de campeonato, em esquecer por um instante as mazelas tipicamente brasileiras e cariocas para sorrir com o choro do presidente, a emoção do governador e a vibração do prefeito, em sentir o orgulho verde e amarelo de um povo castigado por poucas e boas, muitas e más, que mal sabe onde ficam Chicago, Madri ou Tóquio.
Há algo de bom nisso tudo, como há algo de muito melhor em ter a esperança de ver as águas despoluídas, os morros mais verdes, a cidade mais limpa, o metrô, o trem, o ônibus chegando aos quatro cantos, os quatro cantos menos desiguais, mais próximos, sem facções, comandos, milícias, apenas com gente, gente boa e da paz, da Zona Norte, da Zona Sul, do Oiapoque, do Chuí, do mundo inteiro, os mundos misturados, trocando “aquele abraço” que só o carioca sabe dar.
Há algo de bom – e imprescindível – em fazer parte de uma sociedade a partir de agora mais atenta, bisbilhoteira e fiscalizadora. Salve, salve, começa hoje o Big Brother Rio 2016! Porque não queremos ver tanta esperança genuinamente verde ser desmatada por certos inoportunistas, aqueles tantos que já conhecemos de outros carnavais – e olha que, de carnaval, nós entendemos... Não podemos deixar que transformem (mais) uma oportunidade de ouro, ouro olímpico!, num maracanazzo de chances desperdiçadas. Não vamos deixar que nossos sonhos, e tudo que há de bom neles, se tornem uma realidade superfaturada de pesadelos em 2017, 2018, 2019...
Se houve – e houve, eu quero acreditar – algo de bom no último 2 de outubro, na distante e tão inesperadamente próxima Copenhague, tem de haver algo de ainda melhor no Rio, em 2016. E, por extensão, em todo o Brasil. Só assim nossa esperança terá sido saudável. Só assim os céticos e pessimistas de plantão vão dizer (felizes, eu espero) que estavam errados. Só assim vou ter certeza de que não fui bobo ou ingênuo ao reescrever a famosa frase de Hamlet, que, sei lá por que motivo, serviu de inspiração para este texto: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.

30 de set. de 2009

Tela quente

Já faz quase uma década que espero esse finzito de setembro, início de outubro com um gostinho de pipoca estalando na boca, expectativa feliz nos olhos, ansiedade curiosa: época de Festival do Rio, um dos maiores bufês cinematográficos do mundo. Tremendo self-service pra cinéfilo guloso algum botar defeito, com mais de 300 títulos na bandeja – uns fresquinhos, outros requentadinhos –, 60 nacionalidades diferentes, 2 mil e tantas sessões dando a maior sopa durante 15 dias. A glória. E olha que nem sou dos frequentadores mais desesperados, daqueles que pedem divórcio, demissão e empréstimo ao FMI para passar o rodo em todas as sessões diárias e terminar o mês na Juliano Moreira, balbuciando diálogos desconexos em norueguês e iídiche. Sou light: se conseguir ao todo uns cinco, seis filmes já me dou por medalhista olímpica. E mesmo nesse esquema tão humilde, lá estou eu – ano após ano – examinando a tabela da programação com olhos de estrategista, cruzando horários e escarafunchando sinopses, até garantir um ingressinho para chamar de meu.
Claro que nem tudo são flores. Como diria Bruno Mazzeo, Festival do Rio também pode ser a maior cilada. Numa das edições, por exemplo, a legenda eletrônica resolveu tirar férias no meio do filme e deixou o público na saudade (e na ignorância). Vira, mexe, interrompe a sessão dali, tenta consertar daqui, não teve jeito: nada de a bichinha sair da greve. Alguns espectadores desistiram, mas eu e Fábio, profissionais, encaramos o negócio até o fim. Encaramos porque era em inglês, óbvio (e, como típico espécime de Festival, não tinha assim tantas falas); se fosse obra de um Kurosawa da vida, ou de qualquer outro indivíduo não muito americano, danou-se. Mas também tem aqueles longas cuja legenda poderia evaporar no meio da ação e não faria a menor diferença: você iria apenas continuar, tranquilamente, não entendendo porcaria nenhuma. Coisa de três edições atrás, pegamos um filme israelense desse tipo. Não por ser israelense, é certo, mas por ser uma das maiores mixórdias possíveis em termos de enredo – que, ainda por cima, era o oposto do que a sinopse jurava ser. Estamos discutindo a relação com o filme até hoje. E não é preciso ir muito longe: no sábado passado, decidi investir animadamente numa história que prometia – A casa Nucingen. Aparentemente, um tradicional conto de mansão mal-assombrada. Mas assombrados ficamos nós – os pobres pagantes – diante de tamanha ruindade. Personagens incompreensíveis, roteiro capenga, diálogos esdrúxulos, fantasmas bisonhos e metade da plateia abandonando a sala, perplexa, no meio da sessão. Fiquei lá, impávido colosso, esperando surgir algum sentido (sou brasileira e não desisto nunca). Mas, se querem saber, ele ainda não chegou.
Apesar de todos os efeitos colaterais envolvidos, nunca deixa de ser uma delícia garimpar preciosidades no escuro, no chutômetro; felizmente, em sua maioria, as escolhas não são (completamente) furadas. Mais de uma vez, uma ou outra dessas pérolas acabou entrando no meu top ten anual. E mesmo quando o aproveitamento está longe dos 100%, vamos combinar: em que outra época do ano temos a honra de ver, reunidos, títulos como Porco cego quer voar, Matadores de vampiras lésbicas, Sexo, quiabo e manteiga com sal, Os famosos e os duendes da morte e Bom dia, meu nome é Sheila ou como trabalhar em telemarketing e ganhar um vale-coxinha? Em que outro momento histórico lemos sinopses que incluem, na mesma trama, personagens como Caubói, Índio e Cavalo, churrasqueira, tijolos, casa soterrada, professora de piano e bizarras criaturas marinhas? (pode acreditar: essa tosqueira existe e atende pelo nome de A town called Panic). Não tem pra ninguém: o Festival (para nossa sorte e saúde) é conjunção astral única, de relaxar e gozar em todas as possibilidades. Agora lá vou eu com minha tabela; te vejo na próxima sessão. Boa sorte e boas pipocas!

29 de set. de 2009

Capítulo de negativas

Em (mais) um de seus deliciosos textos (“A melhor coisa que não me aconteceu”, publicado na Revista dO Globo no último dia 6 de setembro), Martha Medeiros refletia sobre os não-fatos que desembocam em resultados felizes na vida, aqueles “acontecimentos” que nunca chegam a acontecer e, por sorte, dão lugar a mais bem-sucedidos desvios. Nadíssima a ver com a coleção sarcástica de “nãos” do último capítulo de um Memórias póstumas de Brás Cubas. Nem com “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi” de um Manuel Bandeira. Estes, os “nãos” de Martha, são “nãos” positivos, férteis de alternativas, grávidos de caminhos melhores, de respostas mais certas nessa múltipla escolha que nasce e morre conosco. Não transportam culpas, não contêm ressentimentos. São “nãos” comemorativos dos “sins” que deles decorreram.
Também tenho meu capítulo de boas negativas. Quando no início do antigo ginásio, por exemplo, eu não fui para o Colégio Militar (hipótese cogitada em casa). Nada contra o Colégio Militar – hoje em dia; na época, porém, o que mais depunha contra a instituição era não se tratar do meu próprio colégio, aquele em que eu estudara desde os minúsculos quatro anos. E, felizmente, aquele em que acabei estudando até os dezessete, sem interrupções ou separações. Nunca copiei matéria de nenhum quadro-negro que não fosse o de minha escola original, e a chegada à faculdade alinhavou o ciclo desse crédito (reciprocamente) depositado e desse laço nunca partido. Treze anos sem os sustos dos recomeços, sem os terrores das mudanças para somar toneladas às obrigações.
Por falar em obrigações, abençoados os empregos de 40 horas que não cheguei a ter. Remunerações e vantagens interessantes, é verdade. Mas estaria eu realmente mais satisfeita se oito horas me atassem diariamente ao trabalho? Apesar de toda a amofinação com os alunos, compensaria trocar a fluidez do horário de professora pelo cartão de ponto dos gabinetes? os momentos de vida, fôlego, respiração possível, no meio da semana, pela espera exclusiva do sábado e do domingo? o celular permanentemente desligado pela apreensão da cobrança fora de expediente? Nada: não lamento os reais que não pousaram na conta, sabendo que me deixaram pequenas asinhas de compensação.
Mas o mais maravilhoso de todos os “nãos” ocorreu na época do vestibular – o primeiro. O primeiro porque, mesmo antes de terminar o ensino médio, fiz uma prova de ensaio, para no ano seguinte (o “oficial”) já estar à vontade no ambiente. Porque cheguei relaxada e despreocupada, acabei passando no vestibular de mentirinha. Tentar ou não a matrícula na faculdade, diante da súbita aprovação? Tentei, claro. Levei todos os demais documentos, arrisquei pedir que o certificado do segundo grau ficasse pendente por alguns meses, o tempo de um supletivo. A faculdade, porém, não abriu mão – e a entrada nesse momento foi a melhor coisa que não me aconteceu. Pude terminar aquela fase da vida junto com toda a minha turma de escola, tive festa à fantasia no meio do ano, festa de formatura no final, pacote completo. Como deveria ser. Mas isso (mal sabia eu) ainda não era o morango do sundae. Se eu tivesse virado universitária um ano antes do previsto, não teria tido a mais especial das turmas de faculdade e – principalmente – talvez não tivesse conhecido e namorado aquele que é meu companheiro no tudão da vida (inclusive aqui no blog). O “sim” mais proparoxítono e substantivo de todos. Em matéria de múltipla escolha, tenho certeza de que gabaritei.

19 de set. de 2009

Pais e filhos e filmes

Um pai na meia-idade, apaixonado por cinema e pelos Beatles, decide mostrar ao filho de 15 anos Os reis do iê, iê, iê, imaginando que ele adoraria a banda, as canções, o filme. Que nada. Jesse acha tudo horrível e ainda diz que John Lennon era o pior de todos. Inconformado, David revira seus CDs até encontrar "It's only love", do álbum Rubber soul, e põe a música para tocar, na esperança de que o filho ouça o que ele ouve. "Eles têm boa voz", Jesse reconhece. Boa voz? "Mas o que você sentiu ouvindo a música?", David pergunta. "Honestamente? Nada. Sinto muito", responde, colocando a mão sobre o ombro do pai, como se o consolasse.
É com sequências como essa, aparentemente banais, que David Gilmour reconstrói um pouco da história real entre ele e seu filho e escreve o – por que não – romance O clube do filme. Diante do total desinteresse de Jesse pela escola, David (sem trabalho fixo, com dinheiro curto e tempo livre) faz ao rapaz uma proposta fora do comum e, por isso mesmo, arriscada: o menino poderia deixar os estudos, desde que assistisse semanalmente a três filmes escolhidos por ele, o pai. Negócio fechado.
Entremeando as desventuras de pai e filho que amadurecem juntos e comentários sobre filmes diversos – que vão do impagavelmente hilário Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder, ao inacreditavelmente afetado Showgirls, de Paul Verhoeven, passando por Encurralado, discreta mas preciosa estreia de um jovem cineasta chamado Steven Spielberg –, Gilmour conta sua história com a simplicidade de quem prepara uma bacia de pipoca antes da Sessão da tarde. Traz à cena bastidores de sua própria trajetória e do cinema, como o fato de o diretor Clint Eastwood jamais dizer "ação!", mas um elegante "Quando estiverem prontos".
Sem lançar mão de caríssimos efeitos especiais ou estilísticos, marca registrada da literatura dita pós-moderna (ou será contemporânea, ou pós-contemporânea, ou pós-pós-contemporânea?), O clube do filme não só exibe o bom e velho roteiro com começo, meio e fim, como cativa o leitor com um zoom irresistivelmente agridoce nas chamadas pequenas coisas da vida. Vale o ingresso, digo, a leitura!

13 de set. de 2009

Era uma casa de todas as cores

Eu poderia até mentir, dizer que fui arrastado pela Fernanda, que paguei o ingresso de 30 reais a contragosto. Mas não. Fui ao Casa Cor Rio de Janeiro (a minha quinta edição) porque tenho a mania de gostar de coisas bonitas e sofisticadas, fazer o quê. Pra quem não sabe – e, portanto, está completamente out –, o Casa Cor é um evento de arquitetura, decoração, design, paisagismo... que exala o requinte próprio dos personagens leblonianos do Manoel Carlos, daqueles que sabem viver a vida... Mas deixemos pra lá meu momento de esnobice e vamos ao que interessa.
Adorei a sala de cinema, com seus pôsteres enchendo as paredes de referências pop, o Woody e a Jesse numa prateleira, o Snoopy e o Woodstock noutra, a máquina de fazer pipoca, as poltronas que trepidavam, sacudiam, pulavam no ritmo do sistema de som – e que som!, digno das bombas de Michael Bay (embora o filme exibido na telona que jamais caberia na minha sala fosse o mais recente Superman).
O jardinzinho em homenagem a Burle Marx também tinha seu charme, ainda mais com um papel de parede como aquele: a vista para a pista do Jockey Club, o Corcovado, o céu azul de fazer inveja a qualquer Taiti de fotografia. O cheirinho cítrico da lavanderia, os boxes com chuveiros generosos, os sofás ainda mais generosos (à la coração de mãe), o relógio desenhado na parede da cozinha ou luminosamente projetado no teto da sala, o spa cromoterápico, até o Mini Cooper estacionado na área externa – tudo translumbrante, diria a aprendiz de socialite Kika Jordão.
O maior senão: uma sala enorme (cheia de fotos da Christiane Torloni), que de living não tinha nada; com mobília quase vampiresca de tão gótica, adereços flertando com aquele “rosa do mal” (I mean, praticamente vinho) e à meia-luz, o cenário estava mais para um dying, como sacou oportunamente a Fernanda. O autodenominado estúdio sustentável também tinha um senãozinho dos bons: uma escada vertical e vertiginosa, que economizava madeira nos degraus, cada um com espaço para um pé de cada vez. Esquerdo, direito, esquerdo, direito. Subir, a gente subia de frente, com certa facilidade. Descer, só de costas e quase sem ver os degraus. Valeu a “experiência” – pelo menos, ecologicamente correta.
Enfim, depois de passar pelos cinquenta ambientes da mostra, subir e descer outras tantas escadas, minha viagem anual pelo mundo maravilhoso do bom gosto (e do mau gosto caríssimo, dependendo do ponto de vista) acabou num ponto de ônibus simplesinho, dois reais e oitenta centavos no bolso e a-vida-como-ela-é: a volta pra casa, a minha, na Rua dos Bobos, número zero. Casa Cor de novo – e todo aquele ambiente sofistiquê –, só em 2010... O consolo? Amanhã começa a nova novela do Maneco...

6 de set. de 2009

O grande ditador

Todo mundo já ouviu aquela história: atire-se um sapo numa panela de água fervente e ele salta dali, desesperado; deixe-se o bichinho mergulhado em água prazerosamente morna, porém, e entorpecido ele se permite cozinhar aos poucos, até a morte. Metáfora velha e boa. Se confrontados subitamente com a hipótese de repetição de uma ditadura nazista, reagimos com horror ofendido, como se nos tivessem xingado um parente. É – com a maior justiça do mundo – um tabu social, bicho-papão histórico. As lembranças, fotos, imagens tristíssimas queimam e repugnam de imediato. Mas quem poderia realmente dizer, com a primeira pedra já a postos na mão, qual seria sua (re)ação ao ser cozinhado, em banho-maria, num contexto de carência de ídolos e ideais? no meio de uma juventude necessitada de entusiasmo? num momento de crise nacional e mundial? e em especial, para jogar a última cebolinha no caldeirão, numa fase de surgimento de promessas inflamadas, líderes sedutores? Pouquinhos (sejamos francos) passariam no teste de imersão total. Foi o que puderam constatar, por inexperiência própria, os alunos de Rainer Wenger, protagonista de A onda – um dos mais educativos filmes já feitos sobre o nazismo, embora não exiba uma suástica sequer e se passe nos dias atuais.
Não está ali, no projeto escolar conduzido por Wenger, o bigode raivoso de Hitler cuspindo perdigotos – e sim a simpatia de um professor garotão, camarada dos alunos. Não está ali aquele símbolo que aprendemos historicamente a odiar – e sim um outro, grafitado e moderno. Não estão ali os uniformes enjoadamente militares da juventude hitlerista – e sim prosaicas blusas brancas e calças jeans. Não estão ali os detestáveis campos de concentração – e sim o alijamento de todos os que não usam as tais blusas. Não está ali a reprodução literal do movimento nazista, em cada um de seus entretantos; mas está, sem dúvida, a reprodução de sua alma, em (quase) todos os seus primeiramentes e finalmentes. Para fazer o mesmo prato indigesto, não são necessários ingredientes da mesma marca: similares, desde que ruins, desandam igualmente a receita. É juntar a falta de perspectivas de um, o vazio familiar de outro, o tédio vivendi de um terceiro, o desajuste social de um quarto, as tendências violentas de um quinto, a natureza extremista de um sexto, o ego inflado de um sétimo, a raiva deste, o servilismo daquele – e essa massa, podre de origem, acaba de azedar até o que era inicialmente puro e nobre (em alguém), como a saudade das ideologias, a nostalgia da união, o respeito à disciplina, as boas intenções. Não é de boas intenções que o inferno está cheio: é do fato de se achar que os maus atos também são capazes de protegê-las.
A onda vai na ferida. Mostra, com eficácia e simplicidade, que não é possível estarmos verdadeiramente vacinados contra a ditadura enquanto não reconhecermos o que, no fundo, achamos que ela tem de bom – exatamente para poder olhá-la nos olhos e dizer que isso não basta. Não é a água fervente do nazismo, ou de qualquer outro regime nojento, que nos ameaça. O que nos ameaça não é o ditador externo que seduz, controla, proíbe. O que nos ameaça é o nosso grande (imenso!) ditador interno, pronto para se deixar lentamente seduzir, controlar, proibir. Aquele tiraninho que mora, secreto, em cada um dos nossos desejos de imitar o Capitão Nascimento (ou ter alguém que o imite por nós), de explodir o país para começar de novo, de deletar pessoas em vez de corrigir atitudes, de matar opiniões em vez de sugerir consensos. Este fulano – nosso maior inimigo – não é o que nos agride, mas o que nos convence de que temos o direito de agredir e, eventualmente, o dever de ser agredidos. Os piores ditadores do planeta não são aqueles saudados com a mão estendida. São aqueles que os escutam e (ainda que lá no fundozinho) ficam com vontade de apertar-lhes a mão.

31 de ago. de 2009

Don’t worry, be happy

Quem costuma frequentar (como eu) aqueles sites estrangeiros de cartões virtuais já deve ter percebido que existe dia para tudo. Tudo mesmo. As maiores esdruxulices: Dia do Banho de Espuma (8 de janeiro), Dia de Aprender a Ler Mapa Rodoviário (4 de abril), Dia de Abraçar Seu Gato (30 de maio), Dia de Trazer o Ursinho de Pelúcia para o Trabalho (8 de outubro), Dia do Hobbit (22 de setembro), Dia da Camisa Branca (11 de fevereiro), Dia do Algodão-Doce (7 de dezembro), Dia do Brinquedo Estúpido (16 de dezembro)... por aí vai, numa criatividade malucamente infinita. Mas, no meio de tanta bobice, existem pérolas do calendário. Sem querer, outro dia garimpei uma delas. O site me informou, muito educadamente, que 8 de agosto era o Admit You’re Happy Day – em bom português, Dia de Admitir Que Você É Feliz. Sim, é verdade que a data já caducou há algumas semanas, que hoje é o último diazito de agosto, coisa e tal. Meu suposto atraso, porém, fica absolvido por um detalhe: não contente de assinalar uma única data para o evento, o site declarou solenemente que agosto é o Admit You’re Happy Month – ele inteirinho. E os culpólatras de plantão que se resignem a não ter mais (des)culpas.
Porque esse dia (ou mês) maravilhoso foi criado, claro, para os culpólatras – aqueles seres viciados na insatisfação e, ao mesmo tempo, no medo dela. Um culpólatra se sente culpado demais para admitir que é feliz; ou por motivos sociais (“tanta gente não é...”), ou por razões pessoais (“tanta coisa ainda me falta...”), ou por questões profissionais (“tanta competitividade hoje em dia! pega mal me mostrar satisfeito...”). Um culpólatra autêntico sente esse tudão junto-misturado: sua felicidade piorará o estado dos infelizes, impedirá mais felicidade de entrar nele próprio – como se nossa lotação pudesse ficar esgotada – e será um atraso de carreira, por não passar a imagem de “seriedade”. Em suma: ser feliz, para essa espécie, é o melhor meio de ser infeliz. E ninguém precisa ter estudado o beabá da filosofia socrática para perceber o absurdo da coisa. Seria o mesmo, em versão agrária, que plantar melancia e colher jabuticaba: cultivar sementes que gerarão o seu extremo oposto.
Conhecendo o tumultuado coração dos culpólatras, os criadores do evento foram precisos na escolha do verbo que tanto me chamou a atenção: admita que você é feliz. Não “descubra” – porque não saber algo e passar a sabê-lo é algo que, normalmente, vem de fora pra dentro. Não “perceba” – porque não ver algo e passar a vê-lo é algo que nem sempre implica autoboicote, e sim distração. Admita que você é feliz. Vamos, confesse. Você já percebeu, você já descobriu, você sabe. Você não quer dizer só porque acha que dar-se por feliz é o mesmo que dar-se por satisfeito. Pois não é. Satisfação é a saciedade; felicidade é o apetite. Infelicidade é a fome completa, a falta profunda, a falta por definição. E não falo aqui de estômago (somente); falo do que o supera. Em tudo que nos compõe, a fome é uma tristeza enraizada, imensa, mas o apetite é uma alegria e uma necessidade. Pode-se e deve-se ser feliz mesmo sem estar satisfeito. É esse apetite feliz que nos faz degustar com prazer o que temos e sonhar com o sabor do que ainda não conseguimos. É o que, simultaneamente, nos apoia e nos chama, nos segura e nos atrai. A satisfação é a meta; a felicidade (como alguém já disse) é o caminho. E neste – há muito tempo! – você alegre, insistente, ambiciosa, ansiosa, segura, insegura, confiante, esperançosa, firme, forte, atrapalhadamente já está. Admita.

23 de ago. de 2009

Maracanices

Eu estava no metrô, a cinco minutos do Maracanã, quando meu celular tocou. Era Fernanda. Ela já estava lá, no meio de uma torcida bem feliz. Estou chegando. Os vascaínos estamos chegando – de carro, de ônibus, de trem, de caravela, de orgulho estampado no rosto. Encontrei minha pequena com a Cruz de Malta no peito, um sorriso nas bochechas e a inseparável máquina fotográfica na bolsa.

Entramos no estádio fácil, fácil. Sem filas, sem sustos, sem confusão. Uma organização digna de quem vai sediar uma Copa do Mundo e, no caso do Maraca, de quem vai sediar a final da Copa do Mundo. Tiramos fotos com o mascote do time – um portuguesinho bem simpático, daqueles de bigode típico (e honesto), chapéu de almirante e camisa com faixa de campeão –, compramos os tradicionais biscoitos de polvilho e copinhos d'água pra matar nossa sede de vitória.

Olê, olê, olê, olas dando a volta no estádio, flashes, tudo distraindo os olhos de homens, mulheres, crianças, velhinhos, famílias inteiras – até o Expresso da vez entrar no campo e multiplicar a festa, os gritos, os cânticos, as bexigas, as bandeiras, as bandeironas. Vamos vibrar, meu povão. É gol, é gol. A rede vai balançar. Somos vascaínos, temos amor infinito e o sentimento não pode parar.

Parou a vida fora do maior do mundo. Noventa minutos de alegria e esperança, sem medo, raiva ou desilusão. Só os bons ventos soprando a favor, empurrando pra bem longe as nuvens negras que um dia ameaçaram a viagem do heroico português. Meu pai pulava feito menino a cada gol – um, dois, três, quatro! –, a cada quase-gol, a cada passe, a cada lateral... Ele viveu quase duas horas de menino. (Cá entre nós, ele é um menino).

Acabamos o jogo 111 anos mais jovens, mais fortes, mais vivos. Ninguém à nossa frente, a não ser a multidão se dispersando e cantando de coração aberto. Fernanda e eu jamais vamos esquecer essas horas cheias, repletas, abarrotadas – quando tivemos de novo a certeza de que ser torcedor de fato, ser verdadeiramente popular (sem ser populista), é ser Gigante. Casaca!

16 de ago. de 2009

Pimba na gorduchinha!

Dez minutos para terminar o jogo, quinze para começar a peça. O Vasco tomando aquele sufoco do Juventude, na fria Caxias do Sul. O palco mostrando um caloroso "Bem-vindo a Baltimore". Cinco minutos para acabar a partida, dez para a fofíssima Tracy Turnblad acordar feliz o público. O torcedor aqui sofre com os cinco minutos de acréscimo dados pelo juiz, e a plateia espera mais cinco para o início de Hairspray, o filme que virou peça que virou filme que finalmente chega ao Brasil traduzida e adaptada pelo vascaíno Miguel Falabella. Ufa, final da peleja, a cortina sobe! O Gigante vence por 2 a 1, a gigantinha levanta da cama! Aplausos!
Aplausos para Simone Gutierrez (a nossa Tracy), que rouba todas as cenas gulosamente, como se atacasse a geladeira de madrugada para tomar sozinha dois, três potes de sorvete. Ela canta, dança, interpreta com uma leveza inversamente proporcional aos seus quilinhos a mais. Ao seu lado, a "mama" Edna Turnblad surpreende tanto quanto, graças a um Edson Celulari que não se vê todo dia, cheio de enchimentos, alegria e despudor, especialmente quando divide a canção "Eterno pra mim" com Edgar Bustamante (seu marido Wilbur). Já Danielle Winits faz o que pode como a (muito) chatinha Amber Von Tussle, enquanto Arlete Salles dá cá uns toques de Copélia à sua Velma Von Tussle, tornando a louríssima Miss Caranguejão ainda mais safada e divertida.
Pausa para o intervalo. Quinze minutinhos até o segundo tempo do espetáculo, chance de contar pro meu querido pai como foram os melhores e piores momentos de Vasco e Juventude (ouvidos pelo radinho do meu celular): o Adriano perdeu três gols feitos no final do jogo, o Carlos Alberto recebeu uma entrada duríssima mas está bem, o time correu muito, a defesa segurou a pressão do jeito que pôde, o Fernando Prass salvou um chute daqueles à queima-roupa, o Alex Teixeira terminou a partida de lateral-direito...
... as luzes se apagam novamente e voltamos contentes a Baltimore, a cidadezinha-metonímia de uma América ainda dividida entre gordos e magros, pretos e brancos. Por falar nos pretos, eles dão um show à la Motown, com o vozeirão de Graça Cunha (Motormouth Maybelle), a explosão musical de Corina Sabbas, Karin Hills e Maria Bia Martins (as Dinamites) e o suingue de Seaweed (Victor Hugo Barreto). Black is realmente beautiful! – embora os branquelos Jonatas Faro (Link Lark) e Heloísa de Palma (Penny Pingleton) também mereçam menção mais do que honrosa por suas performances... Dá-lhe, white power!
Enfim juntos – pretos, brancos, gordos, magros, o lado de cá e de lá do teatro, cruzmaltinos ou não –, chegamos ao divertidamente afetado Corny Collins Show, programa de tevê patrocinado pelo laquê Pegada Firme (porque tudo que uma mulher busca na vida é rigidez!) e apresentado pelo aprendiz-de-Sílvio-Santos Corny Collins (Frederico Reuter). Ali, diante das câmeras, Tracy faz um golaço no preconceito: realiza um sonho "tamanho G" – o de se tornar Miss Hairspray – e outro ainda maior, "tamanho GG" – o de integração total, independentemente de cor, forma e penteado. Ao som de "Não vamos parar" ("You can't stop the beat"), moçoila e elenco encerram a noite com um gran finale ultracoloridíssimo, megapurpurinado, que desce superlativamente redondo, redondo...

10 de ago. de 2009

Superfantástico amigo

Mãe todo mundo sabe: é aquela decantada em verso e prosa, padecer no paraíso, desdobrar fibra por fibra, barriga, sangue, o cordão unindo indiscutivelmente duas (ou três, ou quatro...) pessoas durante quase um ano. Pai, não. Paternidade ninguém vê: não tem útero agigantando, não tem cordão umbilical cortável com tesoura física. Não tem provas materiais – além de um pouco romântico DNA. Por quase um ano, ele engravida de maneira teórica: destinatário paciente de uma encomenda que vem do exterior e demora meses para ganhar todas as peças, funcionar direito, ser finalmente liberada pela alfândega. A mãe acompanha o produto desde a fábrica; o pai (fazer o quê) está em casa aguardando, ansioso e confuso, o carteiro tocar a campainha. O filho lá, no forno, é ainda alguma coisa estranhamente terceirizada. E na vinda, um susto. Paternidade é espantada e súbita. Mãe é cargo com direito a estágio; pai começa numa promoção automática.
Mãe é base, padrão, o substantivo da frase: culturalmente se espera que ela esteja sempre ali – referência, quartel, núcleo do sujeito. Por não ser hospedeiro e sim espectador (e expectador), pai tem sido injustamente tratado como mero lucro. Na biologia animal, entende-se que sim; no enredo humano, porém, é diferente o negócio. Se pai não é a substância primeira, que alimenta com sua própria matéria, é, em compensação, o adjetivo que presenteia de cores novas a estrutura de origem. Não dá à luz, mas intensifica e direciona a iluminação. Não cede o leite, mas, no esforço de ser perdoado pela limitação do corpo, derrama-se a si mesmo em todos os possíveis zelos e providências. Pai (se é digno do nome que transporta) leva a vida inteira reconstituindo, na preocupação, o parto que não teve; fabricando, no peito e nos braços, o berço que ele não foi; produzindo, nas brincadeiras (e broncas), o cordão que nunca lhe foi cortado. Estuda Direito para contrabalançar a mãe promotora, faz Economia para não ir à falência com a filha adolescente, vira motorista para resgatar os pimpolhos na balada, tira brevê para fazer o pequeno voar pelo quintal em seus ombros. Em seus ombros faz questão de apoiar o teto da casa, gigante Atlas que é – de seu mundo particular.
Mãe tem os filhos; pai os adota. E não é bolinho adotar os próprios filhos. Nasçam ou não de sua genética, de seu sangue, de sua espera, são perfeitos desconhecidos de seu organismo até que se vão, pouco a pouco, misturando a ele. Claro, a adoção também vale para as mães. Mas pai não tem bônus. Não tem o vazio da barriga, a nostalgia física que, depois de longos nove meses, torna a mãe uma inevitável reincorporadora de seu filho. O coração do pai precisa aprender a ter a necessidade e a saudade que sua barriga não tem. Sejamos justos: não é para qualquer um. Se já é difícil amar sem obrigação os amigos plantados e colhidos pelo caminho, que dirá os amigos obrigatórios. Pois pai é o ser superfantástico que, embora já esteja lá pelo meio da viagem, aceita nos recolher – não mais que de repente – em seu lindo-balão-mágico-azul; não nos expele um dia do útero, mas nos faz nascer dia a dia para dentro de si mesmo, num parto reverso que dura todo o tempo regulamentar da jornada. Difícil é, mas tão lindo, não precisa mudar: com ele o mundo fica bem mais divertido.

5 de ago. de 2009

Muito barulho por nada

O sexto filme baseado nas aventuras de nosso bruxinho preferido, Harry Potter e o enigma do príncipe, tinha de cumprir alguns requisitos principais. Vejamos. E vejamos com alguns inevitáveis spoilers, certo? Em primeiro lugar, o longa se escora no livro que tem a maior quantidade de informações biográficas sobre um dos vilões mais vilanescos da literatura – o cara-de-cobra Lorde Voldemort. Logo, seria de se esperar que fossem muitos e fartos os mergulhos de Harry na Penseira (espécie de “bacia de memórias” do mundo bruxo), para visitar passagens essenciais da vida e pré-vida de seu futuro arqui-inimigo. Nesse ponto, bola fora. São parquinhas de dar dó as cenas que se referem à juventude de Tom Riddle (nome “civil” de Voldemort). Lamento profundo; sigamos para o próximo item. Nas páginas de J. K. Rowling, este foi o momento romanticamente mais decisivo para Harry, que finalmente assumiu seus sentimentos por Gina Weasley e a beijou com toda a fúria dos dezesseis anos, após uma vitória gloriosa no quadribol. E no filme? bem... Sentimentos assumidos: sim. Beijaço pós-quadribol: não. Os fãs que tentem não se irritar com a mixuruquice do namoro selado – e da própria Gina, uma mosca-morta incompatível com a ruivinha alegre e popular que brilha nos livros de Rowling. Suspiro desgostoso. Próximo item.
Como já sabem todos os assíduos frequentadores de Hogwarts, o ano letivo deveria terminar, na telona, com uma carnificina robusta, mordidas de lobisomem incluídas. E terminou, não foi? Qual o quê... Fora aquele Avada kedavra que os leitores já conhecem, só uma meia duziazinha de janelas e copos estilhaçados – e pronto. Andaram dizendo por aí que era pra não diminuir o impacto da batalha final, lá pelo oitavo filme. Desculpa riddikulus. Afinal, todo santo episódio não termina em enfrentamento grande, tanto no papel quanto no celuloide? e algum potterer se sente realmente enfadado com isso? Pelas barbas de Merlin! faça-me o favor. Muxoxos irritados. E por falar em Avada kedavra, cadê a tristeza grandiosa do funeral no colégio? E se a (absurda) intenção era não investir tanto nas cerimônias sombrias, onde estavam os preparativos do casamento de Gui Weasley e Fleur Delacour? Decepção dupla. Mas um último requisito, ah, este era indiscutível, este era batata que o longa iria cumprir, é óbvio: explicar, para os leigos e semileigos, por que cargas d’água o “príncipe” do título era considerado um “príncipe” – e mais: um Príncipe Mestiço, com maiúsculas e tudo. Quanto a isso não tinha jeito de se esquivar, certo? Pois tinha, e o roteiro mais uma vez deu uma vassourada no assunto, fingindo que não era com ele. Então tá. Quem já conhecia a história mordeu os lábios; quem não conhecia, ainda não foi desta vez. Provavelmente o espectador desamparado se limitou a dar uma espiadela no relógio e outra em volta, pra ver se o problema era só com ele ou se alguém mais percebera que o rei estava nu.
Ok, ok: para sermos elegantemente grifinórios, devemos concordar que o filme – como todos os da série – faz vista, e é caprichoso nos detalhes artísticos, sonoros, fotográficos e afins. Não chega a ser um bicho-papão de férias. Mas que é um morto-vivo chochinho, chochinho, sonserino que só ele, lá isso é. Tremendo malfeito feito às páginas que não conseguiu honrar. O que se pode dizer de um roteiro que, entre todos os aspectos palpitantes da obra original, escolheu privilegiar exatamente as filigranas adolescentes dos bruxinhos, e ainda assim de maneira desapaixonada e pouco charmosa? É comprar gato por unicórnio. Não sei você, mas eu saí do cinema com a (nem tão) ligeira impressão de ter sido feita de trouxa.

28 de jul. de 2009

Há um mundo bem melhor...

... onde a cidade cresce ao redor de um castelo encantado; onde os sonhos se realizam; onde adultos e crianças têm apenas pensamentos coloridos, daqueles que fazem a gente voar; onde os problemas desaparecem num passe de mágica e a única preocupação é se divertir até os últimos fogos de artifício estourarem; onde, dizia Walt Disney, "as flores cantam e os leões não mordem"; onde Fernanda e eu vivemos – até aqui – os 17 dias mais felizes das nossas vidas.
Há três anos estivemos em Orlando, soarin' o mundo numa asa-delta: vestimos sombreiros no México, encaramos vikings e duendes na Noruega, esbarramos com a doce Mulan na China, acertamos os relógios na Alemanha, fizemos um pedido na italianíssima Fontana de Nettuno, assistimos a shows do ABBA nos States e dos Beatles numa pracinha de Liverpool, descansamos sob bonsais, meditamos marroquinamente, comemos croissants e outras guloseimas numa pâtisserie e paramos no Canadá para ver e ouvir as luzes e a música do IllumiNations.
Voamos até Marte num foguete, ajudamos o Homem-Aranha a derrotar o Duende Verde e o Dr. Octopus, viajamos no tempo e no espaço num DeLorean, corremos dos dinossauros no Jurassic Park e do abominável-homem-das-neves durante uma expedição ao monte Everest, fomos encolhidos pelo atrapalhado Dr. Szalinski, caímos num formigueiro, colmeia ou coisa-que-o-valha-cheia-de-insetos, fizemos um safári na África, ficamos ensopados numa meia dúzia de splash mountains, rivers e similares.
E não parou por aí: passamos por uns sustinhos básicos numa casa muito bem-assombrada, despencamos no amaldiçoado elevador do Hollywood Tower Hotel, enfrentamos alienígenas nojentos, malvados e de altíssima periculosidade (como o ardiloso Stitch, amiguinho da Lilo), gritamos à beça diante do Imhotep e de todas as suas múmias, nos esquivamos das balas e da fúria dos exterminadores do futuro e dos piratas do Caribe, cantamos horrores all night long com Beetlejuice, Drácula e outros monstros, resgatamos o ET e o levamos de volta para casa voando em bicicletas...
... ufa! "There's no place like Orlando", foi o que Fernanda e eu pensamos depois de um banho de praia no meio de uma estação de esqui (!) e de uma visita a Oz, com direito a Bruxa Má do Oeste e munchkins... E ainda tivemos direito ao Mickey, ao Pato Donald, às Princesas, ao Buzz Lightyear, ao Ursinho Puff, ao Peter Pan, aos onipresentes Tico e Teco, ao Scooby-Doo, aos X-Men, ao Capitão América, ao Shrek, até ao tagarela do Burro e ao traquinas do Grinch. Tivemos o direito, a sorte, o privilégio, a bênção de viver um sonho ao mesmo tempo real e surreal, fantasmic!, que existiu de se pegar – e de se lembrar, sempre.

21 de jul. de 2009

Dreamgirls

Uma bolsa, uma blusinha, um kit do Boticário? Eu estava sem ideia de presente para minha mãe, que fez aniversário no último dia 7. Não queria repetir as lembranças de todos os anos. Foi aí que o sempre útil RJ TV entrou na história e me deu aquela mãozinha, apresentando um musical que acabava de estrear no Leblon, na Sala Fernanda Montenegro: O som da Motown. O espetáculo traz cinquenta dos maiores sucessos lançados pela famosa gravadora Motown nos anos 60, 70 e 80 e – coisa boa – não tem um dialogozinho sequer. Nada de falação atrapalhando a fluência de uma canção emendada na outra. "Apenas" cinco moçoilas de voz cheia e uma banda tocando ao vivo.

Após a exibição de um vídeo-resumo das três décadas – com Martin Luther King, John Lennon, Vietnã, black power, black is beautiful, paz, amor e outros bichos –, o show começa. As meninas sobem no palco com a suingadíssima "I heard it through the grapevine", imortalizada por Marvin Gaye. Atacam com "Papa was a rolling stone", "Theme from Mahogany", "Just my imagination", mas me emocionam mesmo com a singela "My girl", dos Temptations, quando foi irresistível olhar para a Fernanda com um sorriso nos olhos. What can make me feel this way?

A plateia no bolso, e o quinteto se transforma em trio para ressuscitar as Supremes, com direito ao figurino-e-cabelão típico das musas. Ooh baby love, my baby love... não é que elas mexem os ombrinhos com a mesma delicadeza das divas? e estendem os braços para nos alertar, cheias de um charminho (quase) ingênuo, stop! in the name of love, before you break my heart? Melhor que isso só quando as moças somam cinco outra vez para encarnar os Jackson Five. Simone, Thalita, Ellen, Alcione e Débora viram meninos e interpretam "I want you back" e "ABC" com a molecagem necessária nos pés e nos gogós.

Aí chegamos ao momento mais emocionante do espetáculo, que – por isso mesmo – merece um parágrafo só seu. O jovem Michael Jackson no telão, a corajosa Simone Centurione no palco e a clássica "Ben" na voz suave de ambos. Um dueto milimetricamente ensaiado, improvavelmente bem-sucedido, lindamente realizado, reconhecidamente aplaudido. O ingresso estava muito bem pago. A cortina podia fechar ali que sairíamos felizes. Mas tinha mais.

As sessentíssimas "Do you love me" e "Please, Mr. Postman", a discotequíssima "All night long", as figurinhas carimbadas de qualquer sessão-good-times-de-rádio-que-se-preze "Easy", "Three times a lady", "My cherrie amour", "For once in my life", "Endless love" e – para botar o público cantarolando na saída do teatro e mamãe (ainda mais) feliz da vida com o presente-surpresa – a imbatível "Ain't no mountain high enough", um poema em letra-e-música que faz a gente sacudir toda a poeira do mundo e dar a volta por cima, de preferência numa pista de dança. No wind, no rain or winter's cold can't stop me, baby!

15 de jul. de 2009

Festa de arromba

Eu tenho tanto pra lhes falar, mas só num post não sei dizer – como é e foi grande o nosso Roberto, outra vez em sua carreira de jubileu, mas pela primeira vez no palco dos maiores craques do planeta. Pela primeira vez! o maior do Brasil no maior do mundo. Coisa bonita, coisa gostosa de ver e sentir essa força estranha no ar: o Maraca se enchendo aos poucos com os nossos pais e mães e tias e primos e avós, com aqueles que começaram e terminaram namoros, fases, vidas ao som do Rei. Nós também ali, aguardando nas cadeirinhas brancas, binóculos e lanches comprados, ventinho insistente nos deixando apreensivos. Chuvisco. Capas de chuva prudentemente adquiridas. Muitas “olas” seguidas, afinadas, pra disfarçar a espera. Quase na hora, Eri Johnson convoca a plateia para cantar – uma, duas, três vezes – nossa óbvia declaração ao dono da festa: “Como é grande o meu amor por você”. Ele sabe, ele sabe. Mas não custa repetir, reforçar, desejar: vem, Roberto – pode vir quente que nós estamos fervendo!...

Como digna majestade que é, Roberto atende a seu povo e adentra o palco, charmosíssimo, na aparição azul de um calhambeque – bi-bi! Nunca o tradicional abre-alas “Emoções” refletiu tão bem o doce nervosismo do Rei. Vai dar tudo certo, Roberto, como dois e dois são cinco: canta suave as canções que você fez pra mim, pra todos nós. Ele canta. Amante à moda antiga, delicia-nos com os clássicos da fofura “Eu te amo, te amo, te amo” (“Eu também!”, responde a plateia em coro), “Além do horizonte”, “Amor perfeito”, “Detalhes” (momento banquinho-e-violão) e “Outra vez”. Mas uma carreira de cinquenta anos não é feita só dessa grande família de vozes que o acompanha. É preciso saber viver cada cantinho da vida em cada um dos outros cantinhos. Carinhosamente emocionado, o anfitrião volta às raízes com “Aquela casa simples” e homenageia pai (“Meu querido, meu velho, meu amigo”), mãe (“Lady Laura”), outra mãe (“Nossa Senhora” – com direito a cascata de luz) e Maria Rita (“Mulher pequena” – para minha total alegria de baixinha). Voz doce e serena, coisa delicada, coisa de coração grande.

Algumas curvas depois de “O calhambeque”, no meio da labuta de “Caminhoneiro”, o tempo para na contramão e a chuva desaba. As capas que ainda resistem na bolsa são exasperadamente vestidas. Público ensopado, encharcado, enxaguado e tudo que existir de adjetivo pingante no idioma. Por dez minutos ficamos apenas sentados à beira do show, debaixo do splish splash, aguardando o Rei voltar para o resgate. E acha que com isso estamos sofrendo? Se enganou, meu bem: tudo ainda muito certo como dois e dois são cinco, cinquenta anos de estrada, setenta mil vozes na plateia, um milhão de amigos no peito, talvez alguns bilhões no mundo. Roberto volta para nós, agora pra ficar; e, após a fossa de “Do fundo do meu coração”, canta côncavos e convexos numa enxurrada de músicas safadinhas (“Proposta”, “Seu corpo”, “Os seus botões”, “Café da manhã” e “Cavalgada”). Foi bom para nós? Foi, Roberto: não pare. Aos acordes de “Amigo”, já pressentimos que vai ter novidade. E tem: Erasmo Carlos interrompe a música para, do telão, declarar-se ao irmão camarada. Choradeira dupla. Ao Tremendão (já no palco) e ao Rei, junta-se a Ternurinha. Eles são terríveis! Depois das canções em conjunto, Roberto põe mesmo pra derreter num pout-pourri da Jovem Guarda. E, para nossa pré-saudade, abraça-nos com a macia “Como é grande o meu amor por você”, dá-nos a última lição em “É preciso saber viver” e faz sua prece agradecida em “Jesus Cristo”. Fogos, muitos fogos. Rosas, muitas rosas. Acabou – mas são coisas muito grandes pra esquecer. Um soluço e a vontade de ficar mais um instante. Ele é o bom, é o bom, é o bom – demais!...