28 de nov. de 2008

Olhos famintos

Cazuza cantou muitas vezes que o tempo não pára. E é verdade. Querendo ou não, os dados continuam rolando. A vida correndo, e a gente tentando alcançá-la. A maioria não consegue chegar perto dela, não vê os segundos que os minutos guardam, os minutos que as horas guardam, as horas que os dias guardam. Mas esse não é o caso de Ben Willis, o jovem estudante de artes que protagoniza o pequeno-grande-filme Cashback, escondido em uma ou duas salas de exibição aqui no Rio.
O rapaz, sensível até os olhos, passa a sofrer de insônia após terminar com sua namorada, Suzy. Vira uma espécie de bela adormecida às avessas, condenado à vigília eterna até que um beijo de amor verdadeiro o faça dormir novamente. Como permanece acordado dia e noite, decide arrumar um emprego num supermercado 24 horas e aproveitar o tempo extra para ganhar um dinheiro extra. Vai um extra, vem outro – cashback.
As noites insones passam então a ser preenchidas com a limpeza dos corredores da loja, corridas de patinete entre as gôndolas, broncas do gerente ultracompetitivo, brincadeiras bobas com os colegas de trabalho – e a doce menina do caixa, Sharon. Tudo isso sob o olhar desenhista de Ben, que enxerga as banalidades do cotidiano demorada e detalhadamente, a ponto de fazer o tempo parar. Magicamente.
Seus olhos interrompem a correria e despem tudo que está ao redor, não só as belas clientes do supermercado, mas também – e principalmente – as várias camadas do (seu) mundo. Através de sua "câmera interna", conseguimos filmar alguns flashes da vida dele, como o segundo em que se apaixona definitivamente (por Sharon). Acompanhamos de perto e até sentimos seu processo de apaixonamento, e por causa da proximidade e da não-pressa de seu olhar, sentimos quase tudo que ele sente.
Alternativamente colorido, estranhamente humano, apesar de – ou justamente por – seus truques narrativos, como o tempo que pára, Cashback é um filme para quem entra no cinema e de fato esquece o mundo lá fora. Para quem sonha-acordado que o beijo da "princesa" nos adormeça da realidade em fast motion e nos deixe "encantados'' – pelo menos até a luz acender.

21 de nov. de 2008

Song of joy

Os professores têm pedras famigeradíssimas do meio do caminho. Uma das minhas é o aluno Whldingthrdwston (nome fictício em cada consoante), que, mau-caratermente toda a vida, é capaz até de deixar a turma inteira levar uma avaliação-surpresa por ser incapaz de assumir uma travessura já incompatível com sua idade. Pior: reclama da avaliação-surpresa até o ponto da ofensa à professora, como se não fosse exatamente o causador da situação. Reclama como inocente injustiçado que não é. Uma hipocrisia de Oscar. Um tipinho de desafiar a paciência de São Francisco. Um caráter (?) que, por essas e muitíssimas outras, resume bastante do que há de mais estragado na humanidade. E o mais grave é que, em certos dias, nos faz desacreditar dela.
Vinha eu de um episódio assim, num desses dias; descrente e down. Cansada. Como o cansaço era menos físico, não peguei o ônibus assim que saltei do metrô, como sempre faço. Por uma total eventualidade (alguns passos a mais para uma olhada rápida numa vitrine) é que eu pude ouvi-los. Primeiro, o estranhamento: som de violinos por aqui? A essa hora da tarde? Algum evento, alguma inauguração? Nada; eram quatro rapazinhos – três deles com violinos, um deles com um pandeiro – tocando lindamente, no meio da calçada, em frente a uma galeria comercial. A caixa do instrumento aberta, para recolher uma ou outra dinheirice. Todos pareciam ter origem humilde, e nenhum deles aparentava ser mais velho do que Whldingthrdwston.
Diante do insólito, do maravilhoso, parei. Boquiaberta. Quando tocaram um trechinho da “Ode à alegria”, que adoro, comecei a chorar o que não tinha chorado em sala de aula nem depois. Chorei a música, chorei o som do violino – segundo Paganini, “o instrumento que mais toca o coração dos homens” –, mas chorei, principalmente, a diferença. A diferença entre o que eu vira e o que eu via agora. Entre a juventude quase apodrecida de Whldingthrdwston e a dos quatro rapazes que não seriam tão aplaudidos quanto os de Liverpool (aliás, não ouvi ninguém aplaudi-los), mas que deveriam amar a música tanto quanto eles. Ou que ao menos a escolheram entre tantos outros e mais “fáceis” caminhos. Que ficaram atados a essas cordas e não, felizmente, a outras.
Aplaudi sozinha a música e a vida dos quatro meninos, deixei um dinheirito na caixa do violino (querendo deixar uma quantia bem maior) e segui para o ônibus, um pouco melhor do que antes. Cantarolando os versos em inglês da “Ode à alegria” (“Come sing a song of joy of freedom tell the story/ Sing, sing a song of joy for mankind in his glory...”). Aquilo era muito mais do que som de violinos na rua. Era gente, né? Eram da mesma espécie de Whldingthrdwston, mas os meninos violinistas agiam como tais. E, de vez em quando, isso nos surpreende.

16 de nov. de 2008

Mikareta

O que é Mika? As iniciais de outro mirabolante pacote financeiro para salvar a economia mundial? A senha de uma conta corrente que guarda milhões de dólares num banco da Suíça? O nome do mais recente projeto top secret da Agência Espacial Russa? O apelido carinhoso de algum cineasta finlandês que está bombando no Festival de Cinema de Bhrikdbtony? Ou será mais um código davinciano para desmascarar outra-das-maiores-mentiras-da-história-da-humanidade?

Nada disso. Mika é apenas a voz estridente do Barry Gibb (dos Bee Gees), o bigodão despudorado do Freddy Mercury, a ironia psicodélica dos Beatles, o brega-chique-chiclético do ABBA, as fantasias mais loucas e coloridas do Elton John. É a menina de vestido verde de "Grace Kelly", os bichinhos fofos, apaixonados e safadinhos de "Lollipop", as moças gordinhas, bonitas e felizes de "Big girl (you are beautiful)", o simpático pai de família de "Billy Brown", as mãozinhas voadoras e cantantes de "Happy ending".

É aquela música que ouvimos sorrindo quando estamos tristes e pulando quando estamos alegres. É a canção divertida, esperta, despretensiosa, cinematográfica. É o desenho animado que usa e abusa das cores, das formas, das imagens, dos sons, de todas as possibilidades de um mundo sem limites, regras ou chatonices.

É o Moulin Rouge sob a direção do Baz Luhrmann, é uma barra de chocolate Wonka com direito a ticket dourado, é o Tony Manero nos embalos de sábado à noite, é o Coringa pintando e bordando o sete em Gotham City, é o Ferris Bueller curtindo a vida adoidado em cima de um carro alegórico. Mika é simplesmente o pop.

9 de nov. de 2008

Capitão América

Ok, ok, folks, o negão veio cheio de paixão, catou, catou, catou o mundo inteiro – da tradicionalmente republicana Flórida até o fanaticamente anti-americano Oriente Médio, passando inclusive por Paris e seus cafés, quase-sempremente blasés. O cara tem todos os quês de um príncipe feito a pincel e melanina, menino danado, malandro distinto, tudo de bom e de tirar o chapéu. Um negro gato de categoria, com sete vidas para viver, aquela única chancezinha para vencer e uma história que é mesmo de arrepiar. Black is beautiful e ninguém discute. Só que o planeta ficou tão feliz e aliviado (não necessariamente nessa ordem) com a vitória de Obama nas eleições americanas que a gente até desconfia: será que o mais novo salvador da humanidade, o mais recente super-herói das manchetes de jornal, defensor das minorias e maiorias fracas e oprimidas, é de fato uma anomalia do sistema – o que todos nós esperamos – ou apenas mais um truque da Matrix para nos iludir? Se o tempo nos trará alguma resposta, realmente não sei. Mas, como o momento é de festa e esperança em vermelho, azul, preto e branco, também não quero saber. Eu quero, sim, é acreditar. Todos queremos acreditar. Yes, we can!

2 de nov. de 2008

Jogos mortais


Ligar a tevê no meio de uma noite mais escura que todas as outras para assistir aos jogos do Vasco neste Brasileirão – com a ingênua esperança de que o time não ficará para sempre acorrentado no mal-assombrado e sujo porão da Série B – é como ser arrastado para uma armadilha do engenhoso Jigsaw: a tortura é máxima e a chance de escapar, mínima. A cada partida (como a cada filme da interminável cinessérie), um novo e aterrorizante capítulo, com mais requintes de crueldade que o anterior. Quando você pensa que o pior já passou, boo! vem aquele juiz ladrão com a cara cínica do Freddy Krueger apitar um pênalti que só ele viu; ou um zagueiro mais carniceiro que o Jason esfacelar o tornozelo dos nossos atacantes; ou ainda um Michael Myers da imprensa dizer que o Vasco merece descer até o inferno da Segundona por causa do ex-presidente Eurico Miranda, aquele vampirão adiposo que sugou todo o sangue cruzmaltino que podia. Isso tudo, claro, somado ao fato de o time reunir – com raríssimas exceções – um bando de zumbis digno dos piores filmes do George A. Romero. É muita bruxa solta para um time só – que hoje, em pleno Dia de Finados, enfrenta o também (mas não tão) ameaçado Fluminense. Vade retro!