30 de abr. de 2009

Meninas superpoderosas

O que esperar de um prato inventado por Martha Medeiros, servido por Lília Cabral e temperado por Alexandra Richter? A guloseima Divã, é claro – filme que desce redondo e morno como bolinho de chuva, uma comfort food para os olhos. Não tinha como a receita desandar. Martha é escritora de forno e fogão, que cria tão delicioso para a ficção como, por exemplo, para suas colunas no Zero Hora e nO Globo (a cada semana mais apetitosas). Seu livro, já adaptado com sucesso para o palco, ganhou na telona edição esperta e caprichadíssima – um verdadeiro colar de pérolas, engatilhadas uma após a outra; cada diálogo é um flash. Gol de letra da autora e de Marcelo Saback, brilhante roteirista do longa. Quase não há tempo para as (muitas) gargalhadas da plateia: a frase de efeito seguinte é despejada segundos depois, engordando o público de lembranças engraçadas, a serem repetidas dias a fio. É daqueles textos que fazem a gente bancar a maluca, rindo sozinha no ponto de ônibus.
Ninguém com mais envergadura para encarar a protagonista, Mercedes, do que a fabulosa Lília (que, inclusive, já encarnou a personagem no teatro). De quantas atrizes se pode dizer – como dela – que se transformam a cada papel, varrendo da nossa memória as vivências anteriores? Até os olhos da autoanalisada Mercedes são diferentes dos de Catarina (a esposa sofrida de A favorita, também sujeita a muitas transformações pessoais), e mais ainda dos de Marta (não a Medeiros, mas a psicopata-que-assustava-criancinhas de Páginas da vida). Lília é atriz pra mais de metro. E está bem acompanhadíssima, na tela, pela adorável Alexandra – conhecida do grande público por suas participações no Zorra total –, que, na pele da melhor amiga de Mercedes, demonstra a mesma habilidade da companheira em transitar da comédia ao drama com extrema leveza.
Esta é, por sinal, uma das maiores qualidades do filme: a arte de flutuar sobre o riso e o choro com igual competência; de nos levar ao primeiro sem grosseria e ao segundo sem apelação. Uma leveza às vezes insustentável, diga-se de passagem – afinal, parece excessiva em relação ao modo como Mercedes lida com as traições (a própria e a alheia). Afora essa impraticabilidade, o enredo é um show de corte, costura e timing, com troféu-destaque para Paulo Gustavo, impagável no papel do cabeleireiro da protagonista, Renê – dono dos melhores momentos do longa. E não é à toa que o personagem masculino de maior relevo acabe sendo justamente ele, o amigo gay mais próximo e mais aberto à espontaneidade de Mercedes do que seu próprio analista. Divã é um filme de feminices, um filme-água, uma DR líquida e fluida com a vida, um Sex and the city com menos glamour e mais humor (nos dois sentidos desta palavra). Apesar do título, é menos um filme de análise (da qual Mercedes não demonstra realmente precisar) do que de interlocução, de pura verbalização. A grande descoberta da personagem não é algo bombástico em relação a si mesma, mas algo simples em relação a todos: “o fundamental a gente não fala”. Por medo, por preguiça, por vergonha, por insegurança, por segurança em excesso, por achar que há sempre um depois, por achar que o outro já sabe, por achar que ele não precisa saber, o fundamental – vai entender – a gente não fala. Freud explica.

27 de abr. de 2009

Pensando com meus botões

A nova novela das sete já se instalou na telinha de mala, frasqueira e nécessaire, mas até agora só consegui assistir (voluntariamente) ao primeiro bloco do primeiro capítulo. Não é que eu jamais tenha engolido nenhuma novela do autor, Walcyr Carrasco. Ao contrário: achei muito bonitinhas O cravo e a rosa, Chocolate com pimenta, Alma gêmea (à qual assisti integralmente, apesar de considerar o mote da trama abobríssimo). Cheguei até a encarar Fascinação, em priscas eras, ainda no SBT. De uns tempos pra cá, porém, não tenho mais tido todo esse ânimo – e não foi difícil chegar à conclusão do que, afinal, começou a me irritar tanto nas crias do Walcyr: a percepção de que ele tende a escrever para a tela o que, na realidade, caberia com mais felicidade... num palco. Preferencialmente, de teatro grande.
Não significa que Walcyr Carrasco seja um mau criador de histórias para a tevê. Normalmente ele não enrola, não deixa fazer barriga no enredo, inventa subtramas que mantêm o interesse e o movimento. Também tem o mérito de excelentes iniciativas, como a de mostrar a vivência de uma adolescente soropositiva na escola (em Sete pecados) e a de incluir uma personagem feita sob medida para uma atriz cega (na atual Caras e bocas). Palmas para ele, neste sentido. O problema maior tem sido o dos diálogos. Digo que suas linhas se aconchegariam melhor no palco porque não procuram o naturalismo próprio da tela, não buscam mimetizar o jeito de falar característico do dia-a-dia. Os constantes monólogos, por exemplo, são responsáveis por boa parte de minha irritação. A questão não são os monólogos em si – eles aparecem também em outras novelas –, mas o fato de os personagens monologantes dizerem em voz alta, para si mesmos, informações até biográficas sobre si mesmos (que eles, em sã consciência, apenas pensariam). Parece razoável que Dafne (vivida por Flávia Alessandra), enfrentando o drama do desaparecimento de seu avô, se apoie tristemente na varanda do hotel e diga aos seus botões: “Oh, como é estranho que eu perca meu avô no mesmo lugar onde perdi meus pais, quando ainda era menina...”?? Tal recurso de “transmissão de dados” para o espectador não fica nem um cadinho confortável nessa mídia, assim como não ficam o overacting sempre presente nos folhetins do autor – especialmente nas situações “cômicas” – e o uso teimoso do futuro do presente “simples” pelos personagens das novelas (exemplos hipotéticos: “Ele encontrará você amanhã”, “Tudo se resolverá”), no lugar da forma composta que todos usam na vida real (“Ele vai encontrar você amanhã”, “Tudo vai se resolver”). Esse histrionismo meio clown – ironicamente retratado pelo título da novela em curso –, esses diálogos montadinhos que fogem ao estilo low profile do cotidiano, exigem distância entre plateia e ator, exigem ausência da câmera que disseca a vida e o vivente; exigem a nudez do palco italiano. Na tevê, a redundância da superinterpretação somada à lente de aumento deixa tudo com ares de ópera filmada.
É provável que as novelas mais recentes de Walcyr – Sete pecados (a pior) e Caras e bocas –, por não terem a delicadeza natural das seis horas, e sim o teor de comédia quase obrigatório das sete, tenham exagerado os pontos fracos do autor, para quem seria muito mais vantajoso permanecer com tramas de época mais românticas (e essencialmente mais formais no linguajar). O horário atual não lhe faz justiça. Tanto que por enquanto, mesmo sabendo do potencial de Carrasco como timoneiro de folhetim, os botõezinhos do meu controle remoto têm me aconselhado a manter distância. Quem sabe em outro bat-horário ou bat-canal?...

19 de abr. de 2009

Sinais

John Koestler é um professor de astrofísica descrente. Não acredita que haja um significado para as coisas que acontecem no universo. Para ele, os maiores e menores eventos da vida são apenas um amontoado de coincidências químicas e biológicas. Assim é o protagonista interpretado por Nicolas Cage em Presságio (Knowing), o mais novo filme de Alex Proyas, diretor do cultuado Cidade das sombras e do mediano Eu, robô.
Mas John, pai do menino Caleb, viúvo e filho de um velho reverendo, tem sua fé no acaso abalada depois de esbarrar num papel rabiscado com uma sequência de números que – incrível e inexplicavelmente – prediz as datas, os lugares e a quantidade de mortos de cada uma das grandes tragédias ocorridas nos últimos 50 anos. Ao investigar melhor o desenho, ele descobre que ali ainda estão previstas três catástrofes não-ocorridas, a última delas de proporções globais.
Nada é aleatório em Presságio – os acontecimentos, os diálogos aparentemente inofensivos, os homens de preto que aparecem e desaparecem, tudo tem um propósito. Do aparelho de surdez de Caleb, que parece não funcionar direito, passando pelas referências ao poder destrutivo das explosões solares, até o calor que a personagem Diana sente ao encontrar John pela primeira vez. Aqui não há conversa jogada fora, daquele tipo de quem não tem o que dizer e comenta como o tempo está quente ou chuvoso.
Alex Proyas soube dosar os elementos de drama, thriller religioso, ficção científica e cinema-catástrofe com segurança e coerência. As reviravoltas do enredo respeitam a lógica interna do roteiro e conduzem a um final arrebatadoramente incomum – porque termina onde muitos filmes começam – e fantasticamente corajoso – porque não teme levar o espectador aonde nenhum homem jamais esteve.

11 de abr. de 2009

À procura da felicidade

A esta altura, o mundo do esporte e os curiosos em geral estão tentando entender que motivos levaram o ainda jovem Adriano (27 anos) a dar um tempo no futebol. Ele não quer mais saber de Inter de Milão, Seleção Brasileira, fama, dinheiro... Como diz aquela velha canção, "ele só quer é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde nasceu".
Treinadores, jogadores, psicólogos, jornalistas arriscam mil e uma explicações para a decisão – de fato surpreendente – do jogador: depressão, drogas, álcool, problemas familiares. Mas Adriano afirma que não tem problemas familiares, não está em depressão, jamais consumiu drogas e não é alcoólatra. Está apenas cansado da pressão de ser o Imperador, da vida na Itália, de estar longe da família e dos amigos. Não tem mais motivação para jogar bola.
Só que não adianta o que ele diga, as razões que alegue. A pergunta que insiste em não aceitar quaisquer respostas é a mesma: como alguém nascido e criado numa favela carioca – lugar dominado pelo tráfico, soterrado em miséria e desesperança – pode querer voltar às "origens" após viver o sonho milionário de tantos meninos iguais a ele, que não tiveram chance parecida?
Eu, como os treinadores, jogadores, psicólogos, jornalistas, mundo do esporte e curiosos em geral, tendo a acreditar que Adriano esteja enfrentando algum tipo de depressão, problema familiar ou coisa semelhante. Porque é praticamente inacreditável a história de alguém que resolve trocar – isto é uma metonímia – Milão pela Vila Cruzeiro.
Mas eu gostaria mesmo é de pensar diferentemente da maioria e ter a certeza de que Adriano não ficou "doente" da cabeça, de que está mais são e lúcido do que nunca, de que finalmente se encheu de coragem para assumir e agarrar sua felicidade, independentemente de onde ela esteja e a despeito do que os outros dizem que ele tem de fazer, tem de sentir, tem de valorizar.

5 de abr. de 2009

Tudo ao mesmo tempo agora

Em recente coluna na revista Veja, Lya Luft mandou um daqueles textos pelos quais se baba, por cuja autoria se dá um boi. Arrasou. E veio ao encontro de uma certeza que não está, porém, isenta de angústias: a certeza de que não adianta xerocar desejos públicos nem fazer importação de objetivos alheios. No texto, chamado “A mentirosa liberdade”, Lya menciona ultrabacanamente o que seria a síndrome do “ter de”, uma praga de nossos dias: “Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas...”. Sem dúvida. Num tempo em que os maiores recursos tornam as possibilidades mais ricas e várias, não ganhamos mais páginas para escrever; ganhamos um roteiro a cumprir. Saímos da vida para entrar numa gincana.
A lista de tarefas é polpuda. Você (para ser um você que preste) tem de ser bonito (relação de produtos, tratamentos, academias e exercícios em anexo), tem de ser descolado (relação de filmes, livros, shows e viagens obrigatórias em anexo), tem de ter mestrado até os 25 anos, doutorado até os 30 anos, uns dois MBAs já há muitos, promoção para a vice-presidência até os 34, marido (ou esposa) até os 35, dois filhos apolíneos até os 37. Claro, o ideal mesmo seria fazer tudo isso até os 23. Você tem de conhecer toda e qualquer função do celular – e se o seu só serve para aquilo que serve um telefone, você é um dalit impuro, ignominioso e desprezível. Tem de saber o que é blackberry, bluetooth, iPhone, mp6, mp7, mp8, programar qualquer espécie de DVD sem ler o manual, já ter baixado pelo menos 5.376 músicas da internet, ser no mínimo um webdesigner amador, colocar o notebook na bolsa da praia, checar e responder a e-mails no cinema. Tem de estar – como disse alegremente o comercial a que assisti ontem mesmo... no cinema – conectado o tempo todo. E ai de você se ficar inacessível por quatro minutos. Capaz de dar divórcio, de ser demitido, de a empregada se suicidar, de o filho precisar de terapia. Como assim, a bateria arriou? como assim, estava dormindo? ou pior: estava almoçando? E você almoça sem o celular?? Divórcio, claro. Impossível conviver com uma pessoa tão rebelde à urgência alheia. Pior: que nem sabe os motivos do aquecimento global. Pior: que nunca ouviu Amy Winehouse. Pior: que nem é mais jovem!! já tem 27 longos anos – e seis meses!...
Na antiguidade de uma década atrás, começávamos o ano com uma listinha de promessas. Atualmente o principiamos com uma lista de material. Cada janeiro traz novas, moderníssimas obrigatoriedades, como a troca de cada aparelhinho que já saiu obsoleto da loja, ou a reserva (para setembro) no restaurante que está bom-ban-do (e em março, claro, já estará etiquetado com a setinha “desce” em qualquer revista). Sobra tão pouco para nós, sobra tão pouco de nós. Tão pouco tempo, e não meramente para viver com propósito: para viver de propósito. Para ter qualquer idade com 100% de certeza. Para ter qualquer profissão com direito a dúvida. Para não ser feliz compulsória, e sim gratuitamente – mesmo que com dificuldade, porque também se tem direito à dificuldade. Sobra tão pouco tempo para termos tempo – pois passamos o tempo todo não o tendo (tê-lo pega mal). Somos tidos. Pelos bens, pelas urgências, pelas tantas necessidades emprestadas, pelas muitas vontades absorvidas, pelos complexos plantados, pelas supostas verdades semeadas (diferentes daquelas da semana anterior), pelos sentimentos farmaceuticamente encapsulados – somos tidos: voz-passivamente. Numa vida sem quintal, sem balão azul; uma vida de plástico que, como diria Marina Colasanti, “aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”.