31 de ago. de 2009

Don’t worry, be happy

Quem costuma frequentar (como eu) aqueles sites estrangeiros de cartões virtuais já deve ter percebido que existe dia para tudo. Tudo mesmo. As maiores esdruxulices: Dia do Banho de Espuma (8 de janeiro), Dia de Aprender a Ler Mapa Rodoviário (4 de abril), Dia de Abraçar Seu Gato (30 de maio), Dia de Trazer o Ursinho de Pelúcia para o Trabalho (8 de outubro), Dia do Hobbit (22 de setembro), Dia da Camisa Branca (11 de fevereiro), Dia do Algodão-Doce (7 de dezembro), Dia do Brinquedo Estúpido (16 de dezembro)... por aí vai, numa criatividade malucamente infinita. Mas, no meio de tanta bobice, existem pérolas do calendário. Sem querer, outro dia garimpei uma delas. O site me informou, muito educadamente, que 8 de agosto era o Admit You’re Happy Day – em bom português, Dia de Admitir Que Você É Feliz. Sim, é verdade que a data já caducou há algumas semanas, que hoje é o último diazito de agosto, coisa e tal. Meu suposto atraso, porém, fica absolvido por um detalhe: não contente de assinalar uma única data para o evento, o site declarou solenemente que agosto é o Admit You’re Happy Month – ele inteirinho. E os culpólatras de plantão que se resignem a não ter mais (des)culpas.
Porque esse dia (ou mês) maravilhoso foi criado, claro, para os culpólatras – aqueles seres viciados na insatisfação e, ao mesmo tempo, no medo dela. Um culpólatra se sente culpado demais para admitir que é feliz; ou por motivos sociais (“tanta gente não é...”), ou por razões pessoais (“tanta coisa ainda me falta...”), ou por questões profissionais (“tanta competitividade hoje em dia! pega mal me mostrar satisfeito...”). Um culpólatra autêntico sente esse tudão junto-misturado: sua felicidade piorará o estado dos infelizes, impedirá mais felicidade de entrar nele próprio – como se nossa lotação pudesse ficar esgotada – e será um atraso de carreira, por não passar a imagem de “seriedade”. Em suma: ser feliz, para essa espécie, é o melhor meio de ser infeliz. E ninguém precisa ter estudado o beabá da filosofia socrática para perceber o absurdo da coisa. Seria o mesmo, em versão agrária, que plantar melancia e colher jabuticaba: cultivar sementes que gerarão o seu extremo oposto.
Conhecendo o tumultuado coração dos culpólatras, os criadores do evento foram precisos na escolha do verbo que tanto me chamou a atenção: admita que você é feliz. Não “descubra” – porque não saber algo e passar a sabê-lo é algo que, normalmente, vem de fora pra dentro. Não “perceba” – porque não ver algo e passar a vê-lo é algo que nem sempre implica autoboicote, e sim distração. Admita que você é feliz. Vamos, confesse. Você já percebeu, você já descobriu, você sabe. Você não quer dizer só porque acha que dar-se por feliz é o mesmo que dar-se por satisfeito. Pois não é. Satisfação é a saciedade; felicidade é o apetite. Infelicidade é a fome completa, a falta profunda, a falta por definição. E não falo aqui de estômago (somente); falo do que o supera. Em tudo que nos compõe, a fome é uma tristeza enraizada, imensa, mas o apetite é uma alegria e uma necessidade. Pode-se e deve-se ser feliz mesmo sem estar satisfeito. É esse apetite feliz que nos faz degustar com prazer o que temos e sonhar com o sabor do que ainda não conseguimos. É o que, simultaneamente, nos apoia e nos chama, nos segura e nos atrai. A satisfação é a meta; a felicidade (como alguém já disse) é o caminho. E neste – há muito tempo! – você alegre, insistente, ambiciosa, ansiosa, segura, insegura, confiante, esperançosa, firme, forte, atrapalhadamente já está. Admita.

23 de ago. de 2009

Maracanices

Eu estava no metrô, a cinco minutos do Maracanã, quando meu celular tocou. Era Fernanda. Ela já estava lá, no meio de uma torcida bem feliz. Estou chegando. Os vascaínos estamos chegando – de carro, de ônibus, de trem, de caravela, de orgulho estampado no rosto. Encontrei minha pequena com a Cruz de Malta no peito, um sorriso nas bochechas e a inseparável máquina fotográfica na bolsa.

Entramos no estádio fácil, fácil. Sem filas, sem sustos, sem confusão. Uma organização digna de quem vai sediar uma Copa do Mundo e, no caso do Maraca, de quem vai sediar a final da Copa do Mundo. Tiramos fotos com o mascote do time – um portuguesinho bem simpático, daqueles de bigode típico (e honesto), chapéu de almirante e camisa com faixa de campeão –, compramos os tradicionais biscoitos de polvilho e copinhos d'água pra matar nossa sede de vitória.

Olê, olê, olê, olas dando a volta no estádio, flashes, tudo distraindo os olhos de homens, mulheres, crianças, velhinhos, famílias inteiras – até o Expresso da vez entrar no campo e multiplicar a festa, os gritos, os cânticos, as bexigas, as bandeiras, as bandeironas. Vamos vibrar, meu povão. É gol, é gol. A rede vai balançar. Somos vascaínos, temos amor infinito e o sentimento não pode parar.

Parou a vida fora do maior do mundo. Noventa minutos de alegria e esperança, sem medo, raiva ou desilusão. Só os bons ventos soprando a favor, empurrando pra bem longe as nuvens negras que um dia ameaçaram a viagem do heroico português. Meu pai pulava feito menino a cada gol – um, dois, três, quatro! –, a cada quase-gol, a cada passe, a cada lateral... Ele viveu quase duas horas de menino. (Cá entre nós, ele é um menino).

Acabamos o jogo 111 anos mais jovens, mais fortes, mais vivos. Ninguém à nossa frente, a não ser a multidão se dispersando e cantando de coração aberto. Fernanda e eu jamais vamos esquecer essas horas cheias, repletas, abarrotadas – quando tivemos de novo a certeza de que ser torcedor de fato, ser verdadeiramente popular (sem ser populista), é ser Gigante. Casaca!

16 de ago. de 2009

Pimba na gorduchinha!

Dez minutos para terminar o jogo, quinze para começar a peça. O Vasco tomando aquele sufoco do Juventude, na fria Caxias do Sul. O palco mostrando um caloroso "Bem-vindo a Baltimore". Cinco minutos para acabar a partida, dez para a fofíssima Tracy Turnblad acordar feliz o público. O torcedor aqui sofre com os cinco minutos de acréscimo dados pelo juiz, e a plateia espera mais cinco para o início de Hairspray, o filme que virou peça que virou filme que finalmente chega ao Brasil traduzida e adaptada pelo vascaíno Miguel Falabella. Ufa, final da peleja, a cortina sobe! O Gigante vence por 2 a 1, a gigantinha levanta da cama! Aplausos!
Aplausos para Simone Gutierrez (a nossa Tracy), que rouba todas as cenas gulosamente, como se atacasse a geladeira de madrugada para tomar sozinha dois, três potes de sorvete. Ela canta, dança, interpreta com uma leveza inversamente proporcional aos seus quilinhos a mais. Ao seu lado, a "mama" Edna Turnblad surpreende tanto quanto, graças a um Edson Celulari que não se vê todo dia, cheio de enchimentos, alegria e despudor, especialmente quando divide a canção "Eterno pra mim" com Edgar Bustamante (seu marido Wilbur). Já Danielle Winits faz o que pode como a (muito) chatinha Amber Von Tussle, enquanto Arlete Salles dá cá uns toques de Copélia à sua Velma Von Tussle, tornando a louríssima Miss Caranguejão ainda mais safada e divertida.
Pausa para o intervalo. Quinze minutinhos até o segundo tempo do espetáculo, chance de contar pro meu querido pai como foram os melhores e piores momentos de Vasco e Juventude (ouvidos pelo radinho do meu celular): o Adriano perdeu três gols feitos no final do jogo, o Carlos Alberto recebeu uma entrada duríssima mas está bem, o time correu muito, a defesa segurou a pressão do jeito que pôde, o Fernando Prass salvou um chute daqueles à queima-roupa, o Alex Teixeira terminou a partida de lateral-direito...
... as luzes se apagam novamente e voltamos contentes a Baltimore, a cidadezinha-metonímia de uma América ainda dividida entre gordos e magros, pretos e brancos. Por falar nos pretos, eles dão um show à la Motown, com o vozeirão de Graça Cunha (Motormouth Maybelle), a explosão musical de Corina Sabbas, Karin Hills e Maria Bia Martins (as Dinamites) e o suingue de Seaweed (Victor Hugo Barreto). Black is realmente beautiful! – embora os branquelos Jonatas Faro (Link Lark) e Heloísa de Palma (Penny Pingleton) também mereçam menção mais do que honrosa por suas performances... Dá-lhe, white power!
Enfim juntos – pretos, brancos, gordos, magros, o lado de cá e de lá do teatro, cruzmaltinos ou não –, chegamos ao divertidamente afetado Corny Collins Show, programa de tevê patrocinado pelo laquê Pegada Firme (porque tudo que uma mulher busca na vida é rigidez!) e apresentado pelo aprendiz-de-Sílvio-Santos Corny Collins (Frederico Reuter). Ali, diante das câmeras, Tracy faz um golaço no preconceito: realiza um sonho "tamanho G" – o de se tornar Miss Hairspray – e outro ainda maior, "tamanho GG" – o de integração total, independentemente de cor, forma e penteado. Ao som de "Não vamos parar" ("You can't stop the beat"), moçoila e elenco encerram a noite com um gran finale ultracoloridíssimo, megapurpurinado, que desce superlativamente redondo, redondo...

10 de ago. de 2009

Superfantástico amigo

Mãe todo mundo sabe: é aquela decantada em verso e prosa, padecer no paraíso, desdobrar fibra por fibra, barriga, sangue, o cordão unindo indiscutivelmente duas (ou três, ou quatro...) pessoas durante quase um ano. Pai, não. Paternidade ninguém vê: não tem útero agigantando, não tem cordão umbilical cortável com tesoura física. Não tem provas materiais – além de um pouco romântico DNA. Por quase um ano, ele engravida de maneira teórica: destinatário paciente de uma encomenda que vem do exterior e demora meses para ganhar todas as peças, funcionar direito, ser finalmente liberada pela alfândega. A mãe acompanha o produto desde a fábrica; o pai (fazer o quê) está em casa aguardando, ansioso e confuso, o carteiro tocar a campainha. O filho lá, no forno, é ainda alguma coisa estranhamente terceirizada. E na vinda, um susto. Paternidade é espantada e súbita. Mãe é cargo com direito a estágio; pai começa numa promoção automática.
Mãe é base, padrão, o substantivo da frase: culturalmente se espera que ela esteja sempre ali – referência, quartel, núcleo do sujeito. Por não ser hospedeiro e sim espectador (e expectador), pai tem sido injustamente tratado como mero lucro. Na biologia animal, entende-se que sim; no enredo humano, porém, é diferente o negócio. Se pai não é a substância primeira, que alimenta com sua própria matéria, é, em compensação, o adjetivo que presenteia de cores novas a estrutura de origem. Não dá à luz, mas intensifica e direciona a iluminação. Não cede o leite, mas, no esforço de ser perdoado pela limitação do corpo, derrama-se a si mesmo em todos os possíveis zelos e providências. Pai (se é digno do nome que transporta) leva a vida inteira reconstituindo, na preocupação, o parto que não teve; fabricando, no peito e nos braços, o berço que ele não foi; produzindo, nas brincadeiras (e broncas), o cordão que nunca lhe foi cortado. Estuda Direito para contrabalançar a mãe promotora, faz Economia para não ir à falência com a filha adolescente, vira motorista para resgatar os pimpolhos na balada, tira brevê para fazer o pequeno voar pelo quintal em seus ombros. Em seus ombros faz questão de apoiar o teto da casa, gigante Atlas que é – de seu mundo particular.
Mãe tem os filhos; pai os adota. E não é bolinho adotar os próprios filhos. Nasçam ou não de sua genética, de seu sangue, de sua espera, são perfeitos desconhecidos de seu organismo até que se vão, pouco a pouco, misturando a ele. Claro, a adoção também vale para as mães. Mas pai não tem bônus. Não tem o vazio da barriga, a nostalgia física que, depois de longos nove meses, torna a mãe uma inevitável reincorporadora de seu filho. O coração do pai precisa aprender a ter a necessidade e a saudade que sua barriga não tem. Sejamos justos: não é para qualquer um. Se já é difícil amar sem obrigação os amigos plantados e colhidos pelo caminho, que dirá os amigos obrigatórios. Pois pai é o ser superfantástico que, embora já esteja lá pelo meio da viagem, aceita nos recolher – não mais que de repente – em seu lindo-balão-mágico-azul; não nos expele um dia do útero, mas nos faz nascer dia a dia para dentro de si mesmo, num parto reverso que dura todo o tempo regulamentar da jornada. Difícil é, mas tão lindo, não precisa mudar: com ele o mundo fica bem mais divertido.

5 de ago. de 2009

Muito barulho por nada

O sexto filme baseado nas aventuras de nosso bruxinho preferido, Harry Potter e o enigma do príncipe, tinha de cumprir alguns requisitos principais. Vejamos. E vejamos com alguns inevitáveis spoilers, certo? Em primeiro lugar, o longa se escora no livro que tem a maior quantidade de informações biográficas sobre um dos vilões mais vilanescos da literatura – o cara-de-cobra Lorde Voldemort. Logo, seria de se esperar que fossem muitos e fartos os mergulhos de Harry na Penseira (espécie de “bacia de memórias” do mundo bruxo), para visitar passagens essenciais da vida e pré-vida de seu futuro arqui-inimigo. Nesse ponto, bola fora. São parquinhas de dar dó as cenas que se referem à juventude de Tom Riddle (nome “civil” de Voldemort). Lamento profundo; sigamos para o próximo item. Nas páginas de J. K. Rowling, este foi o momento romanticamente mais decisivo para Harry, que finalmente assumiu seus sentimentos por Gina Weasley e a beijou com toda a fúria dos dezesseis anos, após uma vitória gloriosa no quadribol. E no filme? bem... Sentimentos assumidos: sim. Beijaço pós-quadribol: não. Os fãs que tentem não se irritar com a mixuruquice do namoro selado – e da própria Gina, uma mosca-morta incompatível com a ruivinha alegre e popular que brilha nos livros de Rowling. Suspiro desgostoso. Próximo item.
Como já sabem todos os assíduos frequentadores de Hogwarts, o ano letivo deveria terminar, na telona, com uma carnificina robusta, mordidas de lobisomem incluídas. E terminou, não foi? Qual o quê... Fora aquele Avada kedavra que os leitores já conhecem, só uma meia duziazinha de janelas e copos estilhaçados – e pronto. Andaram dizendo por aí que era pra não diminuir o impacto da batalha final, lá pelo oitavo filme. Desculpa riddikulus. Afinal, todo santo episódio não termina em enfrentamento grande, tanto no papel quanto no celuloide? e algum potterer se sente realmente enfadado com isso? Pelas barbas de Merlin! faça-me o favor. Muxoxos irritados. E por falar em Avada kedavra, cadê a tristeza grandiosa do funeral no colégio? E se a (absurda) intenção era não investir tanto nas cerimônias sombrias, onde estavam os preparativos do casamento de Gui Weasley e Fleur Delacour? Decepção dupla. Mas um último requisito, ah, este era indiscutível, este era batata que o longa iria cumprir, é óbvio: explicar, para os leigos e semileigos, por que cargas d’água o “príncipe” do título era considerado um “príncipe” – e mais: um Príncipe Mestiço, com maiúsculas e tudo. Quanto a isso não tinha jeito de se esquivar, certo? Pois tinha, e o roteiro mais uma vez deu uma vassourada no assunto, fingindo que não era com ele. Então tá. Quem já conhecia a história mordeu os lábios; quem não conhecia, ainda não foi desta vez. Provavelmente o espectador desamparado se limitou a dar uma espiadela no relógio e outra em volta, pra ver se o problema era só com ele ou se alguém mais percebera que o rei estava nu.
Ok, ok: para sermos elegantemente grifinórios, devemos concordar que o filme – como todos os da série – faz vista, e é caprichoso nos detalhes artísticos, sonoros, fotográficos e afins. Não chega a ser um bicho-papão de férias. Mas que é um morto-vivo chochinho, chochinho, sonserino que só ele, lá isso é. Tremendo malfeito feito às páginas que não conseguiu honrar. O que se pode dizer de um roteiro que, entre todos os aspectos palpitantes da obra original, escolheu privilegiar exatamente as filigranas adolescentes dos bruxinhos, e ainda assim de maneira desapaixonada e pouco charmosa? É comprar gato por unicórnio. Não sei você, mas eu saí do cinema com a (nem tão) ligeira impressão de ter sido feita de trouxa.