31 de jul. de 2010

Crônica de uma morte anunciada

Desde criança, gosto de sentir o cheiro do que estou lendo. Das páginas compradas em sebo ou do livro zerinho, recém-saído da megastore. Da gramática, da lista telefônica e até da prova de vestibular. Distingo facilmente a Cláudia da Marie Claire, O Globo do Jornal do Brasil, apenas pelo aroma de folha e tinta. Loucura? Coerência, eu diria. Como todos sabem, nosso álbum afetivo é composto especialmente por pecinhas olfativas – e alguém que fez Letras não poderia guardar perfumices somente em frasquinhos de vidro. Fico, pois, um bocadinho órfã ao saber que uma página desse álbum será arrancada. Em breve, muito breve, não terei mais o aroma de folha e tinta do Jornal do Brasil: jornaleiros amigos já soltaram a nota de seu futuro falecimento.
Perder o Jotabê é como ver morrer um estado do país, presenciar a demolição de um monumento ou a falência, sei lá, da Coca-Cola (embora eu não goste de coca-cola). O Jotabê é coisa que não está: é – ou deveria continuar a ser. Durante algum tempo, fomos assinantes do bichinho, então parte das manhãs de minha infância foi tão embalada pelos quadrinhos do Caderno B quanto pela música de Cavalo de Fogo. Nos fins de semana, revista Domingo: eu lia – sem entender absolutamente nada – as colunas gastronômicas do Apicius, me divertia com as crônicas do (hoje global) Verissimo, me irritava com as bobagens de Tutty Vasques, me intrigava com os filmes anunciados nas páginas em preto e branco – sim, a Domingo tinha páginas em preto e branco, depois transferidas para a revista Programa das sextas-feiras.
Mesmo após largarmos a assinatura, acompanhei a eleição da “Musa do Verão” de vários anos, a contagem regressiva para a Domingo de número mil, as inteligências do caderno Ideias, o nascimento da Programa como hoje a conhecemos, cada transformação no design da minha querida revista de sexta – da qual me tornei dependente. Eu e minha irmã. Chegamos ao cúmulo de, morando na mesma casa, comprarmos dois Jotabês a cada sexta-feira, só para cada uma ter a sua Programa. A minha eu não amasso, não dobro, quase não carrego na pasta: conservo protegida, aninhada dentro do jornal em que ela veio, até a edição seguinte. Por que dentro do jornal? Para que ela não perca seu cheiro característico, o aroma de Jotabê que eu, maluca, preciso que ela tenha.
Quando o Jornal do Brasil enxugou as formas, colocando-se em tamanho de tabloide, soou o alerta: economia de papel. Percebi que a coisa andava feia, mas não queria acreditar que meu amigo velho de guerra perderia a batalha. Infelizmente, perdeu. Perdeu para as nojices compradas a 50 centavos, os arremedos de jornal sem cheiro de infância, com gosto salgadinho de sangue. Não digo que tenha perdido para O Globo, porque este foi sempre um digno (e cada vez melhor) vencedor. Perdeu, sim, para a ignorância e a preguiça em sua pior espécie, a leitura acomodada, o sensacionalismo marrom. Sempre os houve, mas sempre houve também quem esperasse mais do que a notícia (e a não notícia) pingada nos olhos a conta-gotas, previamente mastigada. Não há mais. Pelo menos, não há quorum suficiente no Rio de Janeiro para mais de um jornal – que faça jus ao nome.
Acabou o Jotabê impresso. Agora, só cristalizado na internet, preso num aquário virtual sem aroma de folha e tinta. Acabou uma era longa e bonita, começada em 1891. Que venham os fins de semana sem Domingo, as sextas-feiras sem Programa. E um país progressivamente sem Ideias.

24 de jul. de 2010

De malas (des)feitas

Dias atrás, eu lia na Revista da TV dO Globo uma entrevista com a dramaturga Elizabeth Jhin. Impressionei-me com um comentário da autora: “(...) é estranho porque todo mundo se prepara para tudo: estuda para entrar numa faculdade; faz curso de noivos para se casar; quando vai ter filhos, lê um monte de livros sobre bebês; até para preparar um bolo você precisa estudar uma receita. E para a morte, que é a única coisa certa na vida de todo mundo, ninguém se prepara”.
Apesar de não ser exatamente indiferente à ideia da morte, eu nunca tinha elaborado o pensamento dessa forma, e a considerei perfeitíssima. Absurdamente genial pela própria simplicidade sem tabus, sem rodeios. Somos educados para continuar, não para terminar. Pergunta-se às crianças o que elas pretendem se tornar ao crescer – mas jamais lhes perguntam quem desejarão ter sido ao morrer. Recomenda-se aos universitários que engordem o curriculum vitae com mestrados e doutorados sem fim – mas ninguém lhes recomenda que seu curso de vida chegue bastante caudaloso a seu fim. Quer-se saber quando os jovens namorarão, quando os namorados casarão, quando os casados produzirão novas vidas – mas dificilmente se quer saber se todas essas vidas produzirão boas mortes. Obcecados que estamos pelo transitório, fingimos não ter tempo para pensar no definitivo. De fato não temos tempo: somos (tolamente cegos, pavões indefesos) tidos por ele.
Como nos preparar para a morte? Mais ou menos ao contrário do que fazemos com a vida. Para viver, abarrotamos as malas rumo à maior das viagens: mais bens, mais figurinos, mais diplomas, mais informações, mais contracheques, mais celulares, mais seguidores, mais experiências, mais clientes. Arrastamos um trailer de bagagem ao longo do caminho, sempre de olho no próximo minuto.
Para morrer, estaremos tão mais preparados quanto mais coisas formos deixando pela estrada. Quanto mais histórias contarmos, em vez de as guardarmos para o livro que talvez não chegue a ser escrito. Quanto mais perdões concedermos, em vez de os estocarmos à espera do pedido que nunca será feito. Quanto mais brinquedos presentearmos, em vez de os encaixotarmos para o filho que não teremos. Quanto mais abraços distribuirmos, em vez de os reservarmos para os grandes amigos que não viremos a conhecer (ou que não conseguiremos reencontrar). Quanto mais conhecimento partilharmos, em vez de o destinarmos apenas ao emprego que não acredita em salvar o mundo. Quanto mais tempo emprestarmos. Quanto mais exemplos dermos. Quanto mais ouvidos (e mãos) oferecermos. Quanto mais conselhos. Quanto mais gargalhadas. Quanto mais sementes.
Quanto menos houver de exclusivamente nosso, no fim, mais equipados estaremos para ancorar sem desvios de rota. Check-in bem-sucedido é o do viajante que chega a seu porto com as malas suficientemente vazias.

17 de jul. de 2010

It's raining...

Sol e chuva não dão casamento de viúva, nem chuva e sol dão casamento de espanhol. Podiam dar casamento de viúva com espanhol, mas não. Eles dão arco-íris, daqueles cheios de energia, todo trabalhado no technicolor. E, no final desse arco-íris, não está um pote de ouro. Está, sim, um pote de purpurina – uma casa de espetáculos chamada A Gaiola das Loucas.
Lá vivem felizes para sempre Georges e Albin: ele (ou ela) se transforma em Miguel Falabella – dono do cabaré mais famoso da Riviera, a Gaiola –, entretém seus convidados, tem vozeirão que até desengana, faz senhores, senhoras e o (não tão) respeitável público gozar de tanto rir de seus cacos e cassandras; o outro (ou outra) se transforma em Diogo Vilela – a estrela Zazá, nas horas de palco –, chama plumas e paetês para si, canta e encanta como uma "senhora" que apenas é... o que é, não importa a maquiagem.
Eles formam um casal como qualquer outro. Têm suas briguinhas, seus altos e baixos, mas estão juntos há mais de vinte anos. Têm também um filho, o Jean-Michel, que, como todo bom menino, gosta de contrariar os pais – e dá para gostar de meninas. O amor de sua vida é a docinho Anne, filha de Édouard Dindon, presidente do Partido da Família, Tradição e Moralidade (PTFM), uma bicha má que promete varrer da pista todos os espécimes "alegres" da Riviera, caso seja eleito (eleito a quê, só Gloria Gaynor sabe).
Que situação. De ficar bege, quase creme, indo para um areia clarinho, bem Búzios. Mas abafa o caso, que tudo há de se ajeitar no final. Antes, porém, o – a esta hora da madrugada – nadíssima respeitável público se diverte com canções engraçadinhas, como "Masculinity" (em que Georges tenta ensinar Albin a comer um croissant feito John Wayne), fofas, como "With Anne on my arm" (em que Jean abre o coração para seu papá), ou simplesmente montadas na emoção, como "I am what I am" (em que Albin shouts out loud que ele é o que é). Um luxo!
Vale demais fazer uma visitinha à Gaiola e conhecer suas "meninas" maluquinhas. Sem meda. O babado é fortíssimo, as perucas saem do armário, mas a plateia sobrevive. Eu sobrevivi. Minha pequena sobreviveu. Papai e mamãe sobreviveram. Embora eu não goste de bancar a Madame Zoraide, (quase) posso garantir: você sobreviverá. Especialmente se for simpatizante – dos bons musicais, é claro.

11 de jul. de 2010

Jabulani e mais dez

Juro que tentei. Me esforcei ao máximo. Até catei outro assunto "da hora" nos sites de notícia e de busca, mas só me ofereceram o goleiro Bruno, a Dilma Rousseff e o José Serra. Aí achei melhor declinar. E me render à Copa, ainda que aos 45 do segundo tempo. Tinhosa feito a Jabulani, ela acabou me pegando. Na veia. Onde a coruja dorme.
Quer dizer, o Mundial não me pegou exatamente pelo futebol, muitíssimo menos pela seleção do Dunga, que, mesmo com tantos volantes, parecia sem direção (não foi à toa que nossa eliminação começou com uma "batida feia" entre Felipe Melo e Júlio César). Na verdade, o que mais chamou minha atenção sempre esteve fora das quatro linhas. A exceção, óbvio, foi a Jabulani, a bola mais "celebridade" da história das Copas. Periga ela aparecer no próximo Big Brother e faturar – com justiça – o prêmio.
Mas a Copa não foi só dela. Houve outros momentos dignos de nota (em qualquer coluna social): o delicioso rebolation da Shakira no show de abertura; as caras, bocas e besitos, à beira do campo, daquele-que-se-diz-melhor-que-Pelé; o polvo alemão que desbancou Mãe Diná, Robério de Ogum e Madame Mim; o mundo inteiro pedindo para que o Galvão Bueno calasse a boca; a campanha para que o Caio Ribeiro fosse libertado de seu cativeiro global; a torcida animadíssima de Larissa Riquelme pelo seu Paraguai... Ai, ai, ai, ui, ui!
Como não só de beldades vive um Mundial, tivemos também o velho Mick Jagger, que, como torcedor, é um excelente líder dos Rolling Stones; o ainda novo Cristiano Ronaldo, que, como jogador, foi o melhor garoto-propaganda do Gel do Seu Manuel; as onipresentes vuvuzelas, que, esperamos, sejam terminantemente proibidas em 2014; e os discursos improvisados do companheiro Lulalá, que, esperamos, sejam terminantemente proibidos em 2014, 2016...
Por essas e outras (que não caberiam neste top eleven), já está na história a primeira Copa na África. Claro, talvez tenha faltado um time da casa entre os semifinalistas – o que, cá entre nós, seria uma zebraça e confirmaria o jeitão de safári da festa. Mas la mano de Dios não quis assim, fazer o quê. Com ou sem zebra, o Mundial à africana cumpriu – com sobras – sua maior promessa: a de que a "fauna" seria exuberante...

5 de jul. de 2010

Não é brinquedo não

De vez em quando, cai bem fazer um check-upzinho pra ver se tudo continua em cima. Neste caso, vai uma sugestão. Se quiser ter a certeza de que permanece tão humano quanto no último exame, vá assistir a Toy story 3. Saiu de coração e olhos sequinhos, incólumes, invictos? Meu amigo, sinto informar que você exagerou na blindagem e se aposentou do mundo. Gente que é gente – pele, carne, osso, nervos – chora em Toy story 3. Ou tenta não chorar. Ou fica arrepiada. Ou fica incomodada. Ou fica nostálgica. Ou suspira. Ou soluça. Ou passa os dez minutos finais engolindo os soluços para, pelo menos, não aumentar o vexame. Ou todas as anteriores. Mas dos totalmente invulneráveis eu tenho medo, muito medo. Não vou querer encontrar um desses num beco à meia-noite. De preferência, nem na rua ao meio-dia.
Eu? Eu nunca tentei (tanto) não chorar tanto em um filme. Chorei, o Fábio chorou, saímos de olhos vermelhos, no banheiro chorei mais, choro mais ainda ao me lembrar da história – inclusive enquanto escrevo este úmido texto. Se for indício de humanidade, estou candidata ao Nobel. TS3 não é brincadeira. Sim, é um filme sobre brinquedos, aqueles mesmos que há tanto conhecemos: Woody, Buzz, Jessie, Sr. e Sra. Cabeça de Batata, Rex, Slinky, Porcão, Bala no Alvo e – meus preferidos – os etês fofíssimos do Pizza Planet (“Salvou nossas vidas! Seremos eternamente gratos!”). Aliás: é um filme com brinquedos. Mas nunca foi tão demasiada e humanamente sobre nós. Sobre o tempo e o que fazemos dele. Sobre o tempo e o que ele faz da gente. Sobre o tempo e o que fazemos com o que ele nos fez.
Apesar da aventura ritmada e dos alívios cômicos – como a metrossexualidade de Ken e o lado caliente que aflora em Buzz –, o que fica de Toy story 3 se resume na dúvida do Fábio, que saiu do cinema com a estranha sensação de não saber se seus brinquedos antigos, doados, haviam encontrado um lar feliz ou uma creche Sunnyside (o “inferno” da história). “Que pergunta doida, a gente sabe que os brinquedos não sentem e falam de verdade”, ele próprio se censurou. Não importa. A questão procede. Woody, Buzz, meus queridos etezinhos e os demais bonecos não estão no filme para se ser. Nem para ser os brinquedos que tivemos. Eles nos são. Encarnam aquela parte coloridamente essencial de nós mesmos, quase sempre amassada e soterrada por pilhas de seriedade, medo, tempo e exaustão que lhe jogamos por cima.
Se saímos massacrados da sessão, não é porque nos perguntamos quem ficou com a boneca Anjinha ou o carrinho Teteco, que nos conheceram aos cinco, sete, dez anos. Perguntamo-nos, sim, onde passou a morar aquilo que tanta importância teve para nossa parte colorida. Onde passou a morar nossa parte colorida. A quem (ou a que) entregamos nossa parte colorida. Em que mãos depositamos aquela pessoa que começou nossa vida em nosso lugar. Aquela pessoa que construía histórias com as folhas do jardim – antes de as construirmos com palavras. Aquela pessoa que acreditava em homem de capa vermelha, superforça e supervelocidade – antes de acreditarmos em salvar o mundo todo dia um bocadinho, mesmo sem sairmos voando de uma cabine telefônica. Aquela pessoa que colocava roupinhas num fósforo (!) de estimação – antes de aprendermos a cuidar de um ser vivente, às vezes até humano. Aquela pessoa, enfim, que inaugurou nossas vidas para nós, emprestando-nos a bagagem que se encheria ao longo do caminho. A pessoa que fomos antes de sermos; a pessoa que pintou um arco-íris de energia em nossos alicerces; a pessoa que (como o caubói Woody) não desistiu de nós, ainda que tenhamos temporariamente desistido dela. Aquela criatura esquisita e maravilhosa que salvou nossas vidas – e à qual seremos eternamente gratos.