30 de set. de 2009

Tela quente

Já faz quase uma década que espero esse finzito de setembro, início de outubro com um gostinho de pipoca estalando na boca, expectativa feliz nos olhos, ansiedade curiosa: época de Festival do Rio, um dos maiores bufês cinematográficos do mundo. Tremendo self-service pra cinéfilo guloso algum botar defeito, com mais de 300 títulos na bandeja – uns fresquinhos, outros requentadinhos –, 60 nacionalidades diferentes, 2 mil e tantas sessões dando a maior sopa durante 15 dias. A glória. E olha que nem sou dos frequentadores mais desesperados, daqueles que pedem divórcio, demissão e empréstimo ao FMI para passar o rodo em todas as sessões diárias e terminar o mês na Juliano Moreira, balbuciando diálogos desconexos em norueguês e iídiche. Sou light: se conseguir ao todo uns cinco, seis filmes já me dou por medalhista olímpica. E mesmo nesse esquema tão humilde, lá estou eu – ano após ano – examinando a tabela da programação com olhos de estrategista, cruzando horários e escarafunchando sinopses, até garantir um ingressinho para chamar de meu.
Claro que nem tudo são flores. Como diria Bruno Mazzeo, Festival do Rio também pode ser a maior cilada. Numa das edições, por exemplo, a legenda eletrônica resolveu tirar férias no meio do filme e deixou o público na saudade (e na ignorância). Vira, mexe, interrompe a sessão dali, tenta consertar daqui, não teve jeito: nada de a bichinha sair da greve. Alguns espectadores desistiram, mas eu e Fábio, profissionais, encaramos o negócio até o fim. Encaramos porque era em inglês, óbvio (e, como típico espécime de Festival, não tinha assim tantas falas); se fosse obra de um Kurosawa da vida, ou de qualquer outro indivíduo não muito americano, danou-se. Mas também tem aqueles longas cuja legenda poderia evaporar no meio da ação e não faria a menor diferença: você iria apenas continuar, tranquilamente, não entendendo porcaria nenhuma. Coisa de três edições atrás, pegamos um filme israelense desse tipo. Não por ser israelense, é certo, mas por ser uma das maiores mixórdias possíveis em termos de enredo – que, ainda por cima, era o oposto do que a sinopse jurava ser. Estamos discutindo a relação com o filme até hoje. E não é preciso ir muito longe: no sábado passado, decidi investir animadamente numa história que prometia – A casa Nucingen. Aparentemente, um tradicional conto de mansão mal-assombrada. Mas assombrados ficamos nós – os pobres pagantes – diante de tamanha ruindade. Personagens incompreensíveis, roteiro capenga, diálogos esdrúxulos, fantasmas bisonhos e metade da plateia abandonando a sala, perplexa, no meio da sessão. Fiquei lá, impávido colosso, esperando surgir algum sentido (sou brasileira e não desisto nunca). Mas, se querem saber, ele ainda não chegou.
Apesar de todos os efeitos colaterais envolvidos, nunca deixa de ser uma delícia garimpar preciosidades no escuro, no chutômetro; felizmente, em sua maioria, as escolhas não são (completamente) furadas. Mais de uma vez, uma ou outra dessas pérolas acabou entrando no meu top ten anual. E mesmo quando o aproveitamento está longe dos 100%, vamos combinar: em que outra época do ano temos a honra de ver, reunidos, títulos como Porco cego quer voar, Matadores de vampiras lésbicas, Sexo, quiabo e manteiga com sal, Os famosos e os duendes da morte e Bom dia, meu nome é Sheila ou como trabalhar em telemarketing e ganhar um vale-coxinha? Em que outro momento histórico lemos sinopses que incluem, na mesma trama, personagens como Caubói, Índio e Cavalo, churrasqueira, tijolos, casa soterrada, professora de piano e bizarras criaturas marinhas? (pode acreditar: essa tosqueira existe e atende pelo nome de A town called Panic). Não tem pra ninguém: o Festival (para nossa sorte e saúde) é conjunção astral única, de relaxar e gozar em todas as possibilidades. Agora lá vou eu com minha tabela; te vejo na próxima sessão. Boa sorte e boas pipocas!

29 de set. de 2009

Capítulo de negativas

Em (mais) um de seus deliciosos textos (“A melhor coisa que não me aconteceu”, publicado na Revista dO Globo no último dia 6 de setembro), Martha Medeiros refletia sobre os não-fatos que desembocam em resultados felizes na vida, aqueles “acontecimentos” que nunca chegam a acontecer e, por sorte, dão lugar a mais bem-sucedidos desvios. Nadíssima a ver com a coleção sarcástica de “nãos” do último capítulo de um Memórias póstumas de Brás Cubas. Nem com “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi” de um Manuel Bandeira. Estes, os “nãos” de Martha, são “nãos” positivos, férteis de alternativas, grávidos de caminhos melhores, de respostas mais certas nessa múltipla escolha que nasce e morre conosco. Não transportam culpas, não contêm ressentimentos. São “nãos” comemorativos dos “sins” que deles decorreram.
Também tenho meu capítulo de boas negativas. Quando no início do antigo ginásio, por exemplo, eu não fui para o Colégio Militar (hipótese cogitada em casa). Nada contra o Colégio Militar – hoje em dia; na época, porém, o que mais depunha contra a instituição era não se tratar do meu próprio colégio, aquele em que eu estudara desde os minúsculos quatro anos. E, felizmente, aquele em que acabei estudando até os dezessete, sem interrupções ou separações. Nunca copiei matéria de nenhum quadro-negro que não fosse o de minha escola original, e a chegada à faculdade alinhavou o ciclo desse crédito (reciprocamente) depositado e desse laço nunca partido. Treze anos sem os sustos dos recomeços, sem os terrores das mudanças para somar toneladas às obrigações.
Por falar em obrigações, abençoados os empregos de 40 horas que não cheguei a ter. Remunerações e vantagens interessantes, é verdade. Mas estaria eu realmente mais satisfeita se oito horas me atassem diariamente ao trabalho? Apesar de toda a amofinação com os alunos, compensaria trocar a fluidez do horário de professora pelo cartão de ponto dos gabinetes? os momentos de vida, fôlego, respiração possível, no meio da semana, pela espera exclusiva do sábado e do domingo? o celular permanentemente desligado pela apreensão da cobrança fora de expediente? Nada: não lamento os reais que não pousaram na conta, sabendo que me deixaram pequenas asinhas de compensação.
Mas o mais maravilhoso de todos os “nãos” ocorreu na época do vestibular – o primeiro. O primeiro porque, mesmo antes de terminar o ensino médio, fiz uma prova de ensaio, para no ano seguinte (o “oficial”) já estar à vontade no ambiente. Porque cheguei relaxada e despreocupada, acabei passando no vestibular de mentirinha. Tentar ou não a matrícula na faculdade, diante da súbita aprovação? Tentei, claro. Levei todos os demais documentos, arrisquei pedir que o certificado do segundo grau ficasse pendente por alguns meses, o tempo de um supletivo. A faculdade, porém, não abriu mão – e a entrada nesse momento foi a melhor coisa que não me aconteceu. Pude terminar aquela fase da vida junto com toda a minha turma de escola, tive festa à fantasia no meio do ano, festa de formatura no final, pacote completo. Como deveria ser. Mas isso (mal sabia eu) ainda não era o morango do sundae. Se eu tivesse virado universitária um ano antes do previsto, não teria tido a mais especial das turmas de faculdade e – principalmente – talvez não tivesse conhecido e namorado aquele que é meu companheiro no tudão da vida (inclusive aqui no blog). O “sim” mais proparoxítono e substantivo de todos. Em matéria de múltipla escolha, tenho certeza de que gabaritei.

19 de set. de 2009

Pais e filhos e filmes

Um pai na meia-idade, apaixonado por cinema e pelos Beatles, decide mostrar ao filho de 15 anos Os reis do iê, iê, iê, imaginando que ele adoraria a banda, as canções, o filme. Que nada. Jesse acha tudo horrível e ainda diz que John Lennon era o pior de todos. Inconformado, David revira seus CDs até encontrar "It's only love", do álbum Rubber soul, e põe a música para tocar, na esperança de que o filho ouça o que ele ouve. "Eles têm boa voz", Jesse reconhece. Boa voz? "Mas o que você sentiu ouvindo a música?", David pergunta. "Honestamente? Nada. Sinto muito", responde, colocando a mão sobre o ombro do pai, como se o consolasse.
É com sequências como essa, aparentemente banais, que David Gilmour reconstrói um pouco da história real entre ele e seu filho e escreve o – por que não – romance O clube do filme. Diante do total desinteresse de Jesse pela escola, David (sem trabalho fixo, com dinheiro curto e tempo livre) faz ao rapaz uma proposta fora do comum e, por isso mesmo, arriscada: o menino poderia deixar os estudos, desde que assistisse semanalmente a três filmes escolhidos por ele, o pai. Negócio fechado.
Entremeando as desventuras de pai e filho que amadurecem juntos e comentários sobre filmes diversos – que vão do impagavelmente hilário Quanto mais quente melhor, de Billy Wilder, ao inacreditavelmente afetado Showgirls, de Paul Verhoeven, passando por Encurralado, discreta mas preciosa estreia de um jovem cineasta chamado Steven Spielberg –, Gilmour conta sua história com a simplicidade de quem prepara uma bacia de pipoca antes da Sessão da tarde. Traz à cena bastidores de sua própria trajetória e do cinema, como o fato de o diretor Clint Eastwood jamais dizer "ação!", mas um elegante "Quando estiverem prontos".
Sem lançar mão de caríssimos efeitos especiais ou estilísticos, marca registrada da literatura dita pós-moderna (ou será contemporânea, ou pós-contemporânea, ou pós-pós-contemporânea?), O clube do filme não só exibe o bom e velho roteiro com começo, meio e fim, como cativa o leitor com um zoom irresistivelmente agridoce nas chamadas pequenas coisas da vida. Vale o ingresso, digo, a leitura!

13 de set. de 2009

Era uma casa de todas as cores

Eu poderia até mentir, dizer que fui arrastado pela Fernanda, que paguei o ingresso de 30 reais a contragosto. Mas não. Fui ao Casa Cor Rio de Janeiro (a minha quinta edição) porque tenho a mania de gostar de coisas bonitas e sofisticadas, fazer o quê. Pra quem não sabe – e, portanto, está completamente out –, o Casa Cor é um evento de arquitetura, decoração, design, paisagismo... que exala o requinte próprio dos personagens leblonianos do Manoel Carlos, daqueles que sabem viver a vida... Mas deixemos pra lá meu momento de esnobice e vamos ao que interessa.
Adorei a sala de cinema, com seus pôsteres enchendo as paredes de referências pop, o Woody e a Jesse numa prateleira, o Snoopy e o Woodstock noutra, a máquina de fazer pipoca, as poltronas que trepidavam, sacudiam, pulavam no ritmo do sistema de som – e que som!, digno das bombas de Michael Bay (embora o filme exibido na telona que jamais caberia na minha sala fosse o mais recente Superman).
O jardinzinho em homenagem a Burle Marx também tinha seu charme, ainda mais com um papel de parede como aquele: a vista para a pista do Jockey Club, o Corcovado, o céu azul de fazer inveja a qualquer Taiti de fotografia. O cheirinho cítrico da lavanderia, os boxes com chuveiros generosos, os sofás ainda mais generosos (à la coração de mãe), o relógio desenhado na parede da cozinha ou luminosamente projetado no teto da sala, o spa cromoterápico, até o Mini Cooper estacionado na área externa – tudo translumbrante, diria a aprendiz de socialite Kika Jordão.
O maior senão: uma sala enorme (cheia de fotos da Christiane Torloni), que de living não tinha nada; com mobília quase vampiresca de tão gótica, adereços flertando com aquele “rosa do mal” (I mean, praticamente vinho) e à meia-luz, o cenário estava mais para um dying, como sacou oportunamente a Fernanda. O autodenominado estúdio sustentável também tinha um senãozinho dos bons: uma escada vertical e vertiginosa, que economizava madeira nos degraus, cada um com espaço para um pé de cada vez. Esquerdo, direito, esquerdo, direito. Subir, a gente subia de frente, com certa facilidade. Descer, só de costas e quase sem ver os degraus. Valeu a “experiência” – pelo menos, ecologicamente correta.
Enfim, depois de passar pelos cinquenta ambientes da mostra, subir e descer outras tantas escadas, minha viagem anual pelo mundo maravilhoso do bom gosto (e do mau gosto caríssimo, dependendo do ponto de vista) acabou num ponto de ônibus simplesinho, dois reais e oitenta centavos no bolso e a-vida-como-ela-é: a volta pra casa, a minha, na Rua dos Bobos, número zero. Casa Cor de novo – e todo aquele ambiente sofistiquê –, só em 2010... O consolo? Amanhã começa a nova novela do Maneco...

6 de set. de 2009

O grande ditador

Todo mundo já ouviu aquela história: atire-se um sapo numa panela de água fervente e ele salta dali, desesperado; deixe-se o bichinho mergulhado em água prazerosamente morna, porém, e entorpecido ele se permite cozinhar aos poucos, até a morte. Metáfora velha e boa. Se confrontados subitamente com a hipótese de repetição de uma ditadura nazista, reagimos com horror ofendido, como se nos tivessem xingado um parente. É – com a maior justiça do mundo – um tabu social, bicho-papão histórico. As lembranças, fotos, imagens tristíssimas queimam e repugnam de imediato. Mas quem poderia realmente dizer, com a primeira pedra já a postos na mão, qual seria sua (re)ação ao ser cozinhado, em banho-maria, num contexto de carência de ídolos e ideais? no meio de uma juventude necessitada de entusiasmo? num momento de crise nacional e mundial? e em especial, para jogar a última cebolinha no caldeirão, numa fase de surgimento de promessas inflamadas, líderes sedutores? Pouquinhos (sejamos francos) passariam no teste de imersão total. Foi o que puderam constatar, por inexperiência própria, os alunos de Rainer Wenger, protagonista de A onda – um dos mais educativos filmes já feitos sobre o nazismo, embora não exiba uma suástica sequer e se passe nos dias atuais.
Não está ali, no projeto escolar conduzido por Wenger, o bigode raivoso de Hitler cuspindo perdigotos – e sim a simpatia de um professor garotão, camarada dos alunos. Não está ali aquele símbolo que aprendemos historicamente a odiar – e sim um outro, grafitado e moderno. Não estão ali os uniformes enjoadamente militares da juventude hitlerista – e sim prosaicas blusas brancas e calças jeans. Não estão ali os detestáveis campos de concentração – e sim o alijamento de todos os que não usam as tais blusas. Não está ali a reprodução literal do movimento nazista, em cada um de seus entretantos; mas está, sem dúvida, a reprodução de sua alma, em (quase) todos os seus primeiramentes e finalmentes. Para fazer o mesmo prato indigesto, não são necessários ingredientes da mesma marca: similares, desde que ruins, desandam igualmente a receita. É juntar a falta de perspectivas de um, o vazio familiar de outro, o tédio vivendi de um terceiro, o desajuste social de um quarto, as tendências violentas de um quinto, a natureza extremista de um sexto, o ego inflado de um sétimo, a raiva deste, o servilismo daquele – e essa massa, podre de origem, acaba de azedar até o que era inicialmente puro e nobre (em alguém), como a saudade das ideologias, a nostalgia da união, o respeito à disciplina, as boas intenções. Não é de boas intenções que o inferno está cheio: é do fato de se achar que os maus atos também são capazes de protegê-las.
A onda vai na ferida. Mostra, com eficácia e simplicidade, que não é possível estarmos verdadeiramente vacinados contra a ditadura enquanto não reconhecermos o que, no fundo, achamos que ela tem de bom – exatamente para poder olhá-la nos olhos e dizer que isso não basta. Não é a água fervente do nazismo, ou de qualquer outro regime nojento, que nos ameaça. O que nos ameaça não é o ditador externo que seduz, controla, proíbe. O que nos ameaça é o nosso grande (imenso!) ditador interno, pronto para se deixar lentamente seduzir, controlar, proibir. Aquele tiraninho que mora, secreto, em cada um dos nossos desejos de imitar o Capitão Nascimento (ou ter alguém que o imite por nós), de explodir o país para começar de novo, de deletar pessoas em vez de corrigir atitudes, de matar opiniões em vez de sugerir consensos. Este fulano – nosso maior inimigo – não é o que nos agride, mas o que nos convence de que temos o direito de agredir e, eventualmente, o dever de ser agredidos. Os piores ditadores do planeta não são aqueles saudados com a mão estendida. São aqueles que os escutam e (ainda que lá no fundozinho) ficam com vontade de apertar-lhes a mão.