30 de dez. de 2008

Dez resoluções para o Ano Novo

1) Não prometo comer mais legumes, verduras e fibras. Frango grelhado? Não, obrigado, não gosto de isopor sem tempero. Sopinha, caldinho? De leve, já basta o meu corpinho magrelo! Pão salgado, pão de queijo, pão doce recheado, caramelado de açúcar! Eu quero um! Mais um!
2) Não prometo fazer exercícios regular nem irregularmente, muito menos voltar aos turbinados aparelhos de musculação, que têm a mania de querer transformar Esqueletos em He-Mans e Nhonhos em Madrugas.
3) Não prometo ver todos os 1001 filmes a que temos de assistir antes de morrer. Godard, Glauber, Kieslowski? Passo. Faster, pussycat! Kill! Kill! Hã? Repasso.
4) Não prometo ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido só para checar a existência das famigeradas madeleines. Eu acredito, sinceramente, que elas estejam lá, sãs e salvas, dentro dos livros. Aliás, Proust, nunca duvidei disso.
5) Não prometo assistir a todos os jogos do Vasco na Série B – não por infidelidade, apenas por sobrevivência. Como muitos serão realizados aos sábados, a Fernanda me esganaria se eu a trocasse, por exemplo, pelo eletrizante "clássico" contra o Campinense, da Paraíba. Me esganaria mesmo, meu bolinho de bacalhau?
6) Não prometo desligar a tevê quando começar a nona (!) edição do Big Brother Brasil. Não consigo resistir àquela espiadinha básica. Além do mais, papai já comprou o pay-per-view. Salve, salve, Pedro Bial! U-hu!
7) Não prometo ser aquela-professorinha-Helena com os meus queridíssimos alunos. Os pestinhas vão ter que guardar os hormônios na mochila e dar um pouquinho de atenção aos substantivos, aos verbos, às orações subordinadas... Se não andarem na linha, vou bancar o professor aloprado e tocar o carrossel do terror!
8) Não prometo deixar de ser o bom e velho revisor cricri, saudavelmente neurótico, que corrige até vírgula em itálico e rastreia os espaços duplos ao final de cada leitura. Erros de concordância, letrinhas trocadas, frases ambíguas, tremei!
9) Não prometo abrir a mão, a carteira, muito menos a Caixa-Forte. Como bom herdeiro dos MacPatinhas, continuarei minha saga de sovinice, guardando cada moedinha, cada lembrança colorida dos meus 28 anos de vida! Cada beijo, cada abraço, cada filme, cada canção, cada novela, cada livro, cada viagem, cada passeio, cada bobagem, cada vitória...
10) Não prometo interromper o envio de e-mails e scraps publicitários sobre as últimas novidades do Ultramuito. Ainda vou chatear bastante meus amigos e familiares, inclusive o leitor que, heroicamente, chegou a esta derradeira resolução de Ano Novo. Meus parabéns! Você merece um 2009 ultramuito feliz!

28 de dez. de 2008

War

Em A vida é bela (um dos melhores filmes que retratam a Segunda Guerra), o mote é o jogo: adulto judeu transforma campo de concentração em tabuleiro e se desdobra para que criança judia veja como brincadeira todo o horror que a envolve. Em O menino do pijama listrado, o mote é também o jogo – que desta vez, porém, tem como tabuleiro o próprio filme, e como peças todos os personagens. Não é jogo de damas (um dos divertimentos freqüentes do protagonista Bruno), no qual só há diferença de lado e de cores – branco e preto, sim e não. Na verdade, é xadrez o que ali se joga: além da diferença de lado e de cores, há distinção clara de papéis entre peças da mesma cor. Ainda que lutem no mesmo “time”, nem todas as pecinhas arianas podem se mover em qualquer direção. E pouquíssimas sabem exatamente o quanto terão de sacrificar em nome de seu rei – ou Führer.
Bruno, o menino “nazista” que faz amizade com o pequeno judeu anunciado no título, não passa de um peão nessa partida. Tatibitateando no mundo deliróide criado por Hitler, só pode avançar uma casa por vez. É aquele que não tem malícia para ver além, aquele que não entende – com um não-entendimento que lembra o da jovem Anna, de A culpa é do Fidel, mas de um jeito muitíssimo menos bem-humorado e muito mais ingênuo. Apesar de Bruno aparentemente estar no time privilegiado, acaba sendo, como bom peão, um dos primeiros e mais indefesos perdedores: é forçado a deixar sua casa, seus amigos, seus avós, cumprindo sua cota semiconsciente de sacrifícios (no que também lembra Anna). Inocente, mas não santo. Imperfeito, mas inocente. Uma criança de oito anos, tão perdida em seu universo nazista quanto Shmuel, o amiguinho “empijamado” da mesma idade. Ambos peões, cada um em sua própria “equipe”, não admira que se tornem as peças mais próximas entre si. Apenas algumas casas do tabuleiro – apenas alguns arames de cerca – os separam. Encaram-se, observam as diferenças óbvias, mas não compreendem as diferenças impostas.
Menos inocentes do que (mas tão iludidas quanto) Bruno, a mãe e a irmã do menino realizam outros movimentos na peleja. Gretel, de doze anos, é o cavalo; a juventude domada, lavagem-cerebrada por Hitler. Elsa, a mãe, é a dama que caminha em todas as direções: o comodismo, o incômodo, a dúvida, a certeza, o desespero. Com cada elemento em sua fileira, cada um no seu quadrado, o filme automaticamente ganha duas características: 1) o caldo, que podia entornar a qualquer momento em pieguice ordinária, não entorna, já que o enredo tem a precisão de uma disputa de xadrez; 2) o desfecho é previsível para quem analisa o jogo posto, sem com isso deixar de ser emocionante. Adivinha-se friamente o que está por vir; sofre-se humanamente pelo que será impossível evitar. Tragédia anunciada. O movimento final da batalha e, depois, o silêncio. Xeque-mate.

24 de dez. de 2008

Feliz você para o Natal

Não desejarei feliz Natal. Não há por que desejar feliz Natal. Afinal, o Natal é sempre feliz. Desejar feliz Natal é como desejar chuva molhada, sol quente ou neve fria. Lembra a frase de Shakespeare – “Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te”? Pois é: desejar feliz Natal é quase admitir que o Natal, saindo de sua natureza, saindo de si mesmo, pudesse absurdamente ser de outra forma, de outra maneira que não – óbvio! – feliz.
Ora, como haveria de ser o Natal, senão feliz, feliz, feliz?... Pois haverá então outro Natal que não este, o de hoje, o de sempre? Será possível, por acaso, que a História rebobine dois mil e poucos anos e que Jesus venha a desnascer? Porventura a estrela daquele dia deixará de brilhar bussolamente? O presépio poderá desfazer-se? Os Reis Magos desistirão de sua busca? Os anjos calarão o seu anúncio? Tudo o que foi deixará de ter sido? Todo o acontecido algum dia desacontecerá?...
Não: o Natal, como Natal que é, como presente que foi, como essência que tem; o Natal, como fato histórico; o Natal, como fato religioso; o Natal, como nasceu e por quem nele nasceu – o Natal é eternamente si-mesmo, e não poderia nunca, em hipótese alguma, ser qualquer outra coisa que não uma redundância de felicidade. O Natal é inevitavelmente feliz; nós é que podemos ser infelizes nele. Se há pessoas que não vêem e não verão o Natal com olhos felizes, a culpa é nossa. Se há pessoas que não suportam esta época por causa da saudade de quem amaram, a culpa é nossa que as deixamos solitárias, e que lhes permitimos pensar que só uma vez na vida tiveram o direito de ser amadas. Se há pessoas infelizes pela doença, a culpa é nossa – nem sempre da doença, é claro, mas sempre da infelicidade; afinal, não demos a elas motivos para acreditarem que em algum lugar há remédio, apoio, compreensão, compensação. Se há crianças que não crêem mais nem nos pedidos a Papai Noel, a culpa é nossa – demais! Se há pessoas sem uma ceia decente (ou perto disso que seja), a culpa é nossíssima! Nossa – não apenas (mas também) como indivíduos: nossa como grupo, como história, como cultura torta, como mundo torto, como um tudo torto que nasceu e cresceu torto o suficiente para jogar no que é perfeito a fatura de nossa imperfeição. E assim arrematamos nosso escandaloso marasmo, nossa indiferente condescendência, lançando nas mensagens a frase bonita e pleonástica: feliz Natal!
Não desejemos feliz Natal para alguém. Desejemos, façamos! alguém feliz no Natal. De preferência muitos alguéns, de preferência em todos os Natais. Não embrulhemos nossos melhores presentes, mas nos transformemos neles. Vivamos o que hoje dizemos. Sejamos o que hoje celebramos. Um bom você para este Natal!

21 de dez. de 2008

Nada se perde, tudo se transforma

Imagine ter que bancar o cineasta e refilmar, em apenas algumas horas e com sérias restrições orçamentárias, clássicos do cinema como Os Caça-Fantasmas, Robocop, Conduzindo Miss Daisy e 2001: uma odisséia no espaço. Tudo isso para não ver a sua querida videolocadora fechar as portas. Pois é. Essa é a missão (quase) impossível de Jerry (Jack Black) e Mike (Mos Def) no mais novo filme de Michel Gondry, Rebobine, por favor (no original, Be kind, rewind).

Apesar das dificuldades e trapalhadas, os dois fazem dinheiro com a brincadeira, tornam-se astros na vizinhança e ainda chamam a atenção dos grandes estúdios, que os acusam de pirataria. Mas sejamos gentis e rebobinemos um pouquinho o texto, para que o leitor entenda a estória – que começa quando o paranóico Jerry decide sabotar a usina elétrica da cidade por achar que ela está derretendo seu cérebro. O plano dá errado e ele é magnetizado. Assustado, vai procurar ajuda na decadente lojinha onde seu melhor amigo (Mike) trabalha e acaba destruindo acidentalmente todos os filmes disponíveis.

Para não perder os poucos clientes, a dupla resolve então suecar o acervo da locadora, ou seja, refazer cada filme a custo zero e da maneira mais tosca possível. E é aí que Gondry mais acerta. É divertidíssimo acompanhar a refilmagem – ou seria a recriação? – de cenas que ficaram na lembrança de todo cinéfilo. Os truques utilizados para fazer o fantasma aparecer/desaparecer, o homem flutuar na gravidade zero, o King Kong agarrar a mocinha indefesa – todos porcos e mágicos ao mesmo tempo. E o que dizer da pizza que se transforma em poça de sangue? Um tiro mais que certeiro.

Infelizmente, no entanto, Rebobine, por favor não é a obra-prima que eu gostaria que fosse. O roteiro apresenta os personagens meio atropeladamente, as situações iniciais ficam um tantinho atabalhoadas e o desenlace – embora bonito e emocionante – não desenlaça muita coisa. Resta a sensação de que o todo poderia ser melhor, mais redondo, de que o argumento inicial deveria ser mais burilado. De qualquer modo, vale o ingresso, vale a pipoca. Vale a singela homenagem ao cinema.

15 de dez. de 2008

Something to remember

Já era madrugada de segunda-feira quando cheguei em casa. Tirei a camisa e caí na cama extasiado, feliz da vida. Depois do metrô cheio, dos ambulantes em fúria, das filas quilométricas, da chuva interminável, do cheeseburger a oito reais. No meio disso tudo, ainda perdi meu celular veinho, veinho, sem câmera nem pixels. Bobagem. Porque o que pode parecer sacrifício foi nada perto daquele palco maior que o Maraca.
O tic-tac, tic-tac, tic-tac nos telões era meu coração batendo. Fim da contagem regressiva, surge a Rainha do Pop em seu trono, com pompa e espetáculo – Madonna abre as portas de sua fantástica fábrica de doces, a candy shop mais estaile do planeta, de fazer Willy Wonka morrer de inveja. De repente, um Auburn Speedster 851 risca o palco, ao lado de dançarinos tão sincronizados quanto oompa-loompas. Cores, luzes, som, a batida, o ritmo, beat goes on, and on, and on. O público – into the groove. O coração acelera, heartbeat, heartbeat, heartbeat, haja fôlego.
Mas não vou morrer. Die another day. Aparecem uma moçoila com vestido longo e rosa, outra de dominatrix, e mais uma, de noiva. Madonna não é nenhuma delas – é todas. E a cinqüentona tasca um beijaço na garota de branco. Na boca. Safada. Enquanto isso, Mr. DJ põe fogo na pista e prova que music makes the people come together.
A chuva continua, mas fuck the rain, fuck o escorregão, fuck o chão molhado. O Maraca é lindo e la isla, bonita – que Madonna canta rodeada de ciganos festeiros e violinos mais que animados. Palmas, palmas, palmas... até um silêncio reverente, para que a diva se arrisque sozinha em "You must love me", sem playbacks e outras bugigangas eletrônicas. You must love me, you must love me... We do!
E a amamos ainda mais quando ela volta à clássica "Like a prayer". O momento do show. Todos os 75 mil súditos cantam juntos. Pulando, vibrando, suando muito. Orgasmo no maior do mundo. Mas Madonna não tem pena da gente e nos lança outro ray of light. No alvo. O Maraca vira uma nave espacial. Mas time goes by so fast, time goes by so fast... Está terminando. "Give it 2 me" é a última explosão de energia. Game over.

8 de dez. de 2008

O time da virada

Quando os vascaínos levantamos a voz contra o racismo e fomos discriminados pelos "grandes" clubes do Rio de Janeiro, não cedemos à pressão de eliminar de nossa equipe negros, mulatos e operários – resistimos, vencemos e fomos campeões logo em nossa estréia na primeira divisão.

Quando inventaram que não podíamos jogar com os ricos porque não tínhamos um estádio, nos unimos e, em tempo recorde, sem um centavo sequer do governo, erguemos o maior estádio da América Latina na época – a Colina Histórica, São Januário.

Quando fomos para o vestiário do Palestra Itália perdendo por 3 a 0, para o Palmeiras, a final da Copa Mercosul, no ano 2000, todos diziam que seríamos vice-campeões outra vez – e então voltamos ao gramado e, em 45 minutos, protagonizamos a maior e mais espetacular vitória da história do futebol, aquele inesquecível e inacreditável 4 a 3.

Quando, em dezembro de 2008, fomos rebaixados para a Série B do Campeonato Brasileiro, cantamos e choramos de coração para todo o Brasil ver e ouvir. O árbitro apitou o fim da partida contra o Vitória (2 a 0 para eles) e, em vez de vaias ou xingamentos, entoamos nosso hino bem alto, numa demonstração de força e paixão jamais vistas. A virada começou ali.

4 de dez. de 2008

Simplesmente amor

Romance é sempre (sem maldades, por favor) uma coisa dentro da outra. O teatro dentro do cinema, a literatura dentro do teatro, o teatro dentro da televisão, a literatura dentro da televisão, a literatura dentro do cinema, a televisão dentro do cinema, o cinema dentro da televisão (e tudo isso vida adentro). O amor lido, o amor sentido, o amor vivido, o amor atuado, o amor fingido. O ator na vida que vive um ator que finge ser um não-ator que atua. História dentro da estória, camada sobre camada, um corpo sobre o outro, uma mídia sobre a outra. E nós, e todos os nossos outros nomes, todas as nossas outras emprestadas vidas (Pedro, Tristão, Julieta, Cyrano, Ana, Isolda, Romeu, Roxane), lá – inteiros.
Romance é filme inteiro, que nos supre redondo: inteligência e sensação. Tenho a tendência de me apaixonar por obras que eu possa, literalmente, saborear. Aquelas saliváveis, mascáveis, que demoram e derretem na boca à Guimarães Rosa ou Machado. Pois eu saí da sessão de Romance com gosto de petit gâteau na boca – uma plenitude de recheio doce, cremoso e quente. Aliás, minha história de amor com os roteiros de Jorge Furtado vem de tempos imemoriais: eu-menina, na escola, assistindo a Ilha das Flores. Desde então, estivemos sempre juntos. Já que o terceiro vértice sempre foram as regionalices fofíssimas de Guel Arraes, Romance só podia acabar em happy-end. Amor recíproco (porque o artista só pode amar a quem brinda com filmes assim) e feliz. Juntos, Jorge e Guel transformam midasmente qualquer matéria-prima em canaã onde corre leite e mel. Romance, tanto ou quanto (ou mais que) os outros rebentos da dupla, é filme úmido, farto e fértil como o Cântico dos cânticos. E cíclico, sempre cíclico – marca registrada de Jorge, da vida e das máquinas bem azeitadas. Tudo clockworking, sem uma peça ou fala fora de tempo e de lugar. Preciso e generoso.
Como de costume, Guel trabalha com poucos e excelentes. Wagner Moura é um dos raros que geram mocinhos tão soberbos quanto vilões. Letícia Sabatella brilha com seus olhos de gueixa-kabuki-máscara, olhos de taça de vinho prestes a transbordar. Vladimir Brichta, cada vez melhor, se desdobra como fingidor que finge tão completamente. Andréa está, entre Marilda e Radical Chic, totalmente Beltrão. José Wilker – lacônico – e Marco Nanini – exasperado – abocanham cada uma de suas poucas cenas. Tudo e todos descendo skolmente; tudo era uma vez. É filme que se quisera mais infinito do que o enquanto-dura, filme que (es)corre e não se sente. Enquanto dura, porém, nós e todos os nossos outros nós, as nossas outras emprestadas vidas (Guel, Wagner, Letícia, Jorge, Vladimir, Andréa), somos felizes para sempre.

28 de nov. de 2008

Olhos famintos

Cazuza cantou muitas vezes que o tempo não pára. E é verdade. Querendo ou não, os dados continuam rolando. A vida correndo, e a gente tentando alcançá-la. A maioria não consegue chegar perto dela, não vê os segundos que os minutos guardam, os minutos que as horas guardam, as horas que os dias guardam. Mas esse não é o caso de Ben Willis, o jovem estudante de artes que protagoniza o pequeno-grande-filme Cashback, escondido em uma ou duas salas de exibição aqui no Rio.
O rapaz, sensível até os olhos, passa a sofrer de insônia após terminar com sua namorada, Suzy. Vira uma espécie de bela adormecida às avessas, condenado à vigília eterna até que um beijo de amor verdadeiro o faça dormir novamente. Como permanece acordado dia e noite, decide arrumar um emprego num supermercado 24 horas e aproveitar o tempo extra para ganhar um dinheiro extra. Vai um extra, vem outro – cashback.
As noites insones passam então a ser preenchidas com a limpeza dos corredores da loja, corridas de patinete entre as gôndolas, broncas do gerente ultracompetitivo, brincadeiras bobas com os colegas de trabalho – e a doce menina do caixa, Sharon. Tudo isso sob o olhar desenhista de Ben, que enxerga as banalidades do cotidiano demorada e detalhadamente, a ponto de fazer o tempo parar. Magicamente.
Seus olhos interrompem a correria e despem tudo que está ao redor, não só as belas clientes do supermercado, mas também – e principalmente – as várias camadas do (seu) mundo. Através de sua "câmera interna", conseguimos filmar alguns flashes da vida dele, como o segundo em que se apaixona definitivamente (por Sharon). Acompanhamos de perto e até sentimos seu processo de apaixonamento, e por causa da proximidade e da não-pressa de seu olhar, sentimos quase tudo que ele sente.
Alternativamente colorido, estranhamente humano, apesar de – ou justamente por – seus truques narrativos, como o tempo que pára, Cashback é um filme para quem entra no cinema e de fato esquece o mundo lá fora. Para quem sonha-acordado que o beijo da "princesa" nos adormeça da realidade em fast motion e nos deixe "encantados'' – pelo menos até a luz acender.

21 de nov. de 2008

Song of joy

Os professores têm pedras famigeradíssimas do meio do caminho. Uma das minhas é o aluno Whldingthrdwston (nome fictício em cada consoante), que, mau-caratermente toda a vida, é capaz até de deixar a turma inteira levar uma avaliação-surpresa por ser incapaz de assumir uma travessura já incompatível com sua idade. Pior: reclama da avaliação-surpresa até o ponto da ofensa à professora, como se não fosse exatamente o causador da situação. Reclama como inocente injustiçado que não é. Uma hipocrisia de Oscar. Um tipinho de desafiar a paciência de São Francisco. Um caráter (?) que, por essas e muitíssimas outras, resume bastante do que há de mais estragado na humanidade. E o mais grave é que, em certos dias, nos faz desacreditar dela.
Vinha eu de um episódio assim, num desses dias; descrente e down. Cansada. Como o cansaço era menos físico, não peguei o ônibus assim que saltei do metrô, como sempre faço. Por uma total eventualidade (alguns passos a mais para uma olhada rápida numa vitrine) é que eu pude ouvi-los. Primeiro, o estranhamento: som de violinos por aqui? A essa hora da tarde? Algum evento, alguma inauguração? Nada; eram quatro rapazinhos – três deles com violinos, um deles com um pandeiro – tocando lindamente, no meio da calçada, em frente a uma galeria comercial. A caixa do instrumento aberta, para recolher uma ou outra dinheirice. Todos pareciam ter origem humilde, e nenhum deles aparentava ser mais velho do que Whldingthrdwston.
Diante do insólito, do maravilhoso, parei. Boquiaberta. Quando tocaram um trechinho da “Ode à alegria”, que adoro, comecei a chorar o que não tinha chorado em sala de aula nem depois. Chorei a música, chorei o som do violino – segundo Paganini, “o instrumento que mais toca o coração dos homens” –, mas chorei, principalmente, a diferença. A diferença entre o que eu vira e o que eu via agora. Entre a juventude quase apodrecida de Whldingthrdwston e a dos quatro rapazes que não seriam tão aplaudidos quanto os de Liverpool (aliás, não ouvi ninguém aplaudi-los), mas que deveriam amar a música tanto quanto eles. Ou que ao menos a escolheram entre tantos outros e mais “fáceis” caminhos. Que ficaram atados a essas cordas e não, felizmente, a outras.
Aplaudi sozinha a música e a vida dos quatro meninos, deixei um dinheirito na caixa do violino (querendo deixar uma quantia bem maior) e segui para o ônibus, um pouco melhor do que antes. Cantarolando os versos em inglês da “Ode à alegria” (“Come sing a song of joy of freedom tell the story/ Sing, sing a song of joy for mankind in his glory...”). Aquilo era muito mais do que som de violinos na rua. Era gente, né? Eram da mesma espécie de Whldingthrdwston, mas os meninos violinistas agiam como tais. E, de vez em quando, isso nos surpreende.

16 de nov. de 2008

Mikareta

O que é Mika? As iniciais de outro mirabolante pacote financeiro para salvar a economia mundial? A senha de uma conta corrente que guarda milhões de dólares num banco da Suíça? O nome do mais recente projeto top secret da Agência Espacial Russa? O apelido carinhoso de algum cineasta finlandês que está bombando no Festival de Cinema de Bhrikdbtony? Ou será mais um código davinciano para desmascarar outra-das-maiores-mentiras-da-história-da-humanidade?

Nada disso. Mika é apenas a voz estridente do Barry Gibb (dos Bee Gees), o bigodão despudorado do Freddy Mercury, a ironia psicodélica dos Beatles, o brega-chique-chiclético do ABBA, as fantasias mais loucas e coloridas do Elton John. É a menina de vestido verde de "Grace Kelly", os bichinhos fofos, apaixonados e safadinhos de "Lollipop", as moças gordinhas, bonitas e felizes de "Big girl (you are beautiful)", o simpático pai de família de "Billy Brown", as mãozinhas voadoras e cantantes de "Happy ending".

É aquela música que ouvimos sorrindo quando estamos tristes e pulando quando estamos alegres. É a canção divertida, esperta, despretensiosa, cinematográfica. É o desenho animado que usa e abusa das cores, das formas, das imagens, dos sons, de todas as possibilidades de um mundo sem limites, regras ou chatonices.

É o Moulin Rouge sob a direção do Baz Luhrmann, é uma barra de chocolate Wonka com direito a ticket dourado, é o Tony Manero nos embalos de sábado à noite, é o Coringa pintando e bordando o sete em Gotham City, é o Ferris Bueller curtindo a vida adoidado em cima de um carro alegórico. Mika é simplesmente o pop.

9 de nov. de 2008

Capitão América

Ok, ok, folks, o negão veio cheio de paixão, catou, catou, catou o mundo inteiro – da tradicionalmente republicana Flórida até o fanaticamente anti-americano Oriente Médio, passando inclusive por Paris e seus cafés, quase-sempremente blasés. O cara tem todos os quês de um príncipe feito a pincel e melanina, menino danado, malandro distinto, tudo de bom e de tirar o chapéu. Um negro gato de categoria, com sete vidas para viver, aquela única chancezinha para vencer e uma história que é mesmo de arrepiar. Black is beautiful e ninguém discute. Só que o planeta ficou tão feliz e aliviado (não necessariamente nessa ordem) com a vitória de Obama nas eleições americanas que a gente até desconfia: será que o mais novo salvador da humanidade, o mais recente super-herói das manchetes de jornal, defensor das minorias e maiorias fracas e oprimidas, é de fato uma anomalia do sistema – o que todos nós esperamos – ou apenas mais um truque da Matrix para nos iludir? Se o tempo nos trará alguma resposta, realmente não sei. Mas, como o momento é de festa e esperança em vermelho, azul, preto e branco, também não quero saber. Eu quero, sim, é acreditar. Todos queremos acreditar. Yes, we can!

2 de nov. de 2008

Jogos mortais


Ligar a tevê no meio de uma noite mais escura que todas as outras para assistir aos jogos do Vasco neste Brasileirão – com a ingênua esperança de que o time não ficará para sempre acorrentado no mal-assombrado e sujo porão da Série B – é como ser arrastado para uma armadilha do engenhoso Jigsaw: a tortura é máxima e a chance de escapar, mínima. A cada partida (como a cada filme da interminável cinessérie), um novo e aterrorizante capítulo, com mais requintes de crueldade que o anterior. Quando você pensa que o pior já passou, boo! vem aquele juiz ladrão com a cara cínica do Freddy Krueger apitar um pênalti que só ele viu; ou um zagueiro mais carniceiro que o Jason esfacelar o tornozelo dos nossos atacantes; ou ainda um Michael Myers da imprensa dizer que o Vasco merece descer até o inferno da Segundona por causa do ex-presidente Eurico Miranda, aquele vampirão adiposo que sugou todo o sangue cruzmaltino que podia. Isso tudo, claro, somado ao fato de o time reunir – com raríssimas exceções – um bando de zumbis digno dos piores filmes do George A. Romero. É muita bruxa solta para um time só – que hoje, em pleno Dia de Finados, enfrenta o também (mas não tão) ameaçado Fluminense. Vade retro!

27 de out. de 2008

Sonhos de uma summer night

Casal bonitinho se conhece, fica a fim, se separa, se reencontra no colégio. Mas ele – o garoto mais popular – e ela – a menina mais boazinha – fazem parte de grupos diferentes. Rola dificuldade e muita música chicletona. No final, estão juntinhos. Todos estão juntos, todos cantam e todos estão felizes em... Rydell High. Isso, claro, não é o que você estava pensando; é Grease – trinta anos atrás. Em 1978, o mundo era muito mais inocente. Só que o musical-fenômeno da época, por trás do açúcar, não era: insinuações safadinhas entre os acordes de "Summer nights", suposta gravidez adolescente, aborto cogitado, mocinha que solta a franga e, pra chegar no cara, incorpora a bad girl (com roupitcha de couro preto meio sado, meio popozuda).
Em 2008, o mundo é muuuuito menos inocente. Só que o musical-fenômeno de nossa época, por trás do açúcar, tem um tantão mais de açúcar – e é inocente pa-cas. A história-piloto continua a mesma: férias, casal bonitinho, a fim, se separa, se reencontra, mas ele... mas ela... canções, chicletice, juntice. Todos cantam, todos estão felizes em East High, no mundo inteiro – e nas duas seqüências que só aumentam o fanatismo em torno da franquia High School Musical.
Fascinante e delicioso paradoxo de nossos dias. Alguém sabe me explicar como é que um musical dos mais musicais consegue atrair tantos meninos, sempre tão avessos ao gênero? E como é que eles adoram o clima romântico da trilogia? E como é que, numa era de crianças de dez anos que já estão no octogésimo beijo (e, às vezes, no primeiro filho), há tanta euforia em torno do romance castíssimo de Troy e Gabriella, que só trocaram smacks no segundo filme? High School é inexplicável, incompreensível, maravilhoso. Bolha de delicadeza que não deve nada a uma Moreninha da vida. Com valsa e tudo. Nessa máquina do tempo inesperada, até pegar na mão é um processo longo e suave – e, não à toa, o primeiro beijo do casal foi celebrado como gol de final de Copa. Uma delícia.
E o terceiro filme?... Lindo, fofo e comovente para quem viveu de perto o romance-doçura de Troy e Gabriella, os bancos de East High. Não há canções tão boas quanto no episódio-piloto, o mais melódico dos três. Mas os números musicais estão cada vez mais sofisticados – e, afinal, a intenção não é julgar. A intenção é chorar com as frases que já sabemos que vamos ouvir, e chorar mais ainda ao vê-los de beca, nossos meninos, que orgulho!, ao som lentinho de "We’re all in this together". Depois eles encerram o filme mais teatral da série curvando-se para nós, olhando-nos nos olhos antes de sumirem por trás da cortina vermelha. A gente sai de olhos também vermelhos e pronto. High School não é só pegar uma sessão: é embarcar numa proposta, suspender a crítica, voltar à infância do mundo, a um refúgio colorido de paz. Mesmo os adolescentes que torcem o nariz para as morenices literárias adotam as de Gabriella, e as menininhas, que aqui fora namoram bandidos, suspiram por Troy – o novo príncipe, artista, esportista, cavalheiro, bom moço até a medula. Esses suspiros e sonhos não podem ser só ficção. Nem mentira. Talvez saudade do que, aqui fora, fingimos tristemente não fazer mais falta. This could be the (re)start of something new.

20 de out. de 2008

O poeta do Ó

Aproveito o dia frio, chuvoso e cinzento para render uma singela homenagem àquele que foi, continua sendo e será sempre um dos mestres da poesia contemporânea, quiçá da poesia universal – o inigualável, o inestimável, o inenarrável, o inencontrável, o inenrugável Pedrinho da Silva, também conhecido por muitos como "o lírico da baixa modernidade".
Para aqueles que guardam a petulância de jamais de haver lido ou escutado um de seus ultramagistrais poemas e para aqueles que simplesmente ignoram a presença onipresente desse patrimônio da cultura – hoje reverenciado por críticos do quilate de Silviano São Tiago, Harold Blue e Afonso Romeno de Sant'Anna –, reproduzo abaixo uma de suas incontáveis pílulas de genialidade, o belíssimo "Ó!":

Ó! O fonema dos fonemas!
Ó! A letra das letras!
Ó! A palavra das palavras!
Ó... Ó!

Quem quiser saber um pouco mais sobre a obra desse gênio de todos os tempos, basta procurar na internet os seminais estudos realizados pelos professores doutores do Departamento de Letras Neogóticas da Universidade de Thywklwythghington, em Bhrikdbtony. Neles, é possível vislumbrar esse lastro de História, um tesouro de valor incalculável – que, por muito pouco, não foi eternamente soterrado por uma asquerosa política de interesses. Ó, poeta amado, salve, salve!

15 de out. de 2008

"E" de escola

Faz um mês que minha vida mudou. Não sou mais só blogueiro e revisor de textos. Agora sou professor também. Comecei a dar aulas de Língua Portuguesa numa escola municipal do subúrbio carioca. Tenho duas turmas de sétimo ano (antiga sexta série) e uma de oitavo (antiga sétima). Muitos alunos, especialmente os do sétimo ano, são bem fracos. Não entendem os enunciados dos exercícios – ou não tentam entender. Poucos conseguem ver a diferença entre um substantivo e um verbo, um adjetivo e um pronome. O máximo que fazem é copiar o que ponho no quadro, e olhe lá. Alguns nem abrem o caderno – quando têm um caderno. Outros são mal-educados à beça. Falam gritando, cospem ironias, andam pela sala, só pensam em escutar mp3. E ainda há os que estão com os hormônios à flor da pele, cujo mundinho se resume a uma xereca (no caso dos meninos) e a um pau (no caso das meninas). Mas tudo isso é o de menos. O pior mesmo é ter que ouvir de alguns alunos que não vão ler o texto ou copiar a matéria porque são bandidos. Porque são bandidos. Uns dizem isso só para me assustar. Outros, porém, repetem essas palavras com uma resignação de dar pena. De dar pena do nosso futuro.

12 de out. de 2008

Alô, criançada!

O vídeo acima e o post inteirinho são dedicados especialmente àqueles adultos bobos, feios, chatos e caras-de-mamão, que têm vergonha de ter gostado de tantas "coisas bobas" na infância, que se dizem "muito velhos" para se jogar numa piscina de bolinhas coloridas, que acham ridícula a idéia de comemorar o próximo aniversário numa casa de festas infantis, que não se lembram de um refrãozinho do Trem da Alegria (no caso da minha geração), que resolvem pegar um avião e visitar um monte de parques temáticos "só" por causa dos filhos, que não conseguem imaginar o que uma criança sente, mesmo que tenham sido crianças por tanto tempo.

A todos os Darth Vaders da vida, que perderam o que tinham de melhor e ficaram apenas com os restos-de-pessoa que precisam respirar artificialmente, que jogaram o espírito da meninice fora e vivem uma existência mutilada e no Lado Negro, eu só gostaria de lembrar: amadurecer é conservar a infância no melhor sentido. É guardar na sua caixa-forte – com cadeado, cerca elétrica e alarme antifurto – tudo que foi bom, tudo que você foi e viveu em cada momento de sua história.

Ser adulto não é deixar de ser criança. É tornar-se uma criança melhor, aperfeiçoada, uma pessoa feliz, aberta ao mundo, sem preconceitos, capaz de se surpreender e de criar. Esquecer o que vivemos, mesmo – ou principalmente – as tais "coisas bobas" da infância, é esquecer o que aprendemos. Se a cabeça pode um dia esquecer isto ou aquilo, o coração não pode – jamais.

5 de out. de 2008

Em busca do tempo – perdido?

Pode ser uma fotografia desbotada e alegre, tirada com aqueles filmes de 24 poses; pode ser uma canção antiga do Balão Mágico ou da Xuxa; pode ser o cheiro de um perfume que a vovó só usava no Natal; pode ser um brinquedo velho da Estrela; pode ser um filme com aqueles monstros recriados em stop-motion; pode ser um cartucho empoeirado do Atari; pode ser um time de botão guardado numa caixa de margarina; pode ser a embalagem colorida de um biscoito que não é mais fabricado; pode ser o pátio da escola do nosso primário ou ginásio; pode ser um gibi do Tio Patinhas que lemos trocentas vezes na infância. Tudo, mas verdadeiramente tudo, pode ser uma madeleine, como aquelas de Marcel Proust. Qualquer objeto, qualquer sensação – por mais insignificante que aparentemente seja – pode significar um mundo inteiro.
Esta semana, passeando pela internet, tropecei na imagem (e na receita) de uma das minhas madeleines, os blueberry muffins – as blueberries são umas frutinhas roxas, muito parecidas com as amoras, e os muffins são uns bolinhos muito fofos que os americanos adoram. Dar uma mordida numa delícia dessas imediatamente me teletransporta para Orlando, nos Estados Unidos. Lá, antes de cada Magic Kingdom, Epcot ou Universal Studios, tinha um café da manhã com direito a pão de forma torradinho com cream cheese, waffles, frutas e blueberry muffins! Os dias mais felizes da minha vida começavam com o sabor desses bolinhos! Nhami!
Hora dessas ainda conto um pouquinho das minhas aventuras na terra do Mickey Mouse. Por ora, deixo com vocês a receita dos blueberry muffins – que, se não conserva o poder de uma madeleine para todos, certamente tem o sabor mais-que-gostoso de uma gulodice feliz – e uma perguntinha boba, só para passar o tempo (ou recuperar um tempo "perdido" num cantinho da memória): quais são as suas madeleines? O que os faz lembrar "o" instante de suas vidas?

Blueberry muffin

Ingredientes:

2 xícaras de farinha;
2 colheres de chá de fermento;
3/4 de xícara de açúcar;
1 xícara de creme de leite;
2 ovos;
1 colher de chá de raspas de casca de limão;
1/3 de xícara de óleo;
1 ¼ de xícara de blueberries.

Como fazer:

Preaqueça o forno em 180 graus. Peneire a farinha com o fermento numa tigela. Adicione o açúcar e mexa para misturar. Noutra tigela, combine o creme, os ovos, as raspinhas de limão e o óleo. Misture bem e despeje na tigela de secos. Depois de mexer bem, com a mistura homogênea, coloque as blueberries na massa (agora sem mexer demais). Despeje a massa nas forminhas; a massa deve ficar a 2/3 da capacidade. Asse até os bolinhos dourarem levemente e passarem no teste do palito.

Bom apetite e boas lembranças!

21 de set. de 2008

Mire e veja

Eu podia falar muita coisa depois de ter visto o novo longa de Fernando Meirelles, Ensaio sobre a cegueira, baseado na obra homônima de José Saramago. Podia falar do filme em si: da câmera que exibe um foco incerto, dos enquadramentos assimétricos, da fotografia branca que nos mergulha num "mar de leite"; do modo preciso com que a edição apresenta os personagens e retrata a passagem do tempo; do ótimo elenco, que não nos deixa esquecer em nenhum momento que estamos apenas diante de pessoas e de seus extremos; da enorme fidelidade do roteiro aos fatos e ao espírito do livro.

Podia falar do tempo em que li o romance (quando ainda cursava a faculdade de Letras), de como achei aquela estória ironicamente tão visual, de como me deu vontade de filmá-la, se eu fosse um cineasta. Me lembro muito bem do dia em que terminei de ler o livro e comentei com os amigos mais próximos: "Nossa, se eu tivesse que escolher um romance pra adaptar pro cinema, seria esse!". Ainda cheguei a descrever como seria a última cena. (E não é que o Fernando a fez igualzinha?)

Também podia não falar nada disso e apenas reproduzir um certo poema de Augusto dos Anjos, intitulado "O morcego", que, sabe-se lá por quê, veio muito a calhar:

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Mas o que eu podia falar diante de um flagrante tão feliz, coisa de minuto e meio, que mostra a reação de Saramago ao ver o seu Ensaio na telona pela primeira vez, durante uma exibição em Lisboa? É ou não é ultra-emocionante?

14 de set. de 2008

Dancing days

Abra suas asas, solte suas feras...
Caia na gandaia, entre nessa festa!
E leve com você seu sonho mais louco...
Eu quero ver seu corpo – lindo, leve e solto!
A gente às vezes sente, sofre, dança sem querer dançar...
Na nossa festa, vale tudo – vale ser alguém como eu, como você!
Dance bem, dance mal, dance sem parar!
Dance bem, dance até sem saber dançar!
Sucesso das Frenéticas nos anos 70, a canção "Dancing days" diz muito do que Mamma mia! é. O mais novo filhote da Broadway a tentar a sorte na tela grande – seguindo a trilha deixada por Chicago, Os produtores e Hairspray – mais parece uma animada festa de casamento do que um filme. Não é à toa que a estória gira em torno de um casório, o da menina Sophie (Amanda Seyfried), que deseja aproveitar a oportunidade para descobrir quem é o seu verdadeiro pai.
Entre os convidados, a oscarizada Meryl Streep, o 007 Pierce Brosnan e o galã Colin Firth – uma turma sem a menor vergonha de soltar as feras e cair na gandaia; que sente, sofre, se diverte, canta bem, canta mais ou menos, dança bem, dança sem parar, dança até sem saber dançar. O quê? Os inesquecíveis hits do ABBA, aquele grupo sueco que dominou as pistas do mundo inteiro entre meados dos anos 70 e o início dos 80 com clássicos chicléticos como "Dancing queen", "Mamma mia" e "The winner takes it all".
Mas, se do lado de lá o elenco assume o figurino ultracolorido que veste e entra na festa sem medo de ser feliz, do lado de cá o espectador precisa fazer o mesmo para que outro casamento aconteça: o dele com o filme. Portanto, amigos, estejam com as mentes e – principalmente – os corações lindos, leves e soltos. Antes, durante e depois de a música parar.
P.S.: Não é que ainda existe gente que vai ao cinema assistir a um musical e – pasmem! – resmunga toda vez que os atores abrem a boca pra cantar? Mamma mia!

11 de set. de 2008

Direto da Caixa-Forte

Há exatos 21 anos – em 11 de setembro de 1987 –, era exibido nos Estados Unidos o episódio-piloto de uma das séries de animação mais bem-sucedidas dos estúdios Disney: Ducktales (que, no Brasil, ainda receberia o subtítulo "os caçadores de aventuras"). O desenho era inspirado nos quadrinhos do mestre Carl Barks, responsável pela invenção de Patópolis e de muitos de seus habitantes, como o Tio Patinhas, o Gastão, os Irmãos Metralha, o Professor Pardal e a Maga Patalógika, entre outros.

Os episódios de Ducktales tinham todos os quês daquele tipo de aventura à Indiana Jones, com muitos mapas empoeirados, relíquias valiosas e cidades perdidas. Ao lado de seus sobrinhos (Huguinho, Zezinho e Luisinho) e do atrapalhado Capitão Boing, Tio Patinhas varria os quatro cantos do mundo atrás de selvas, ilhas e povoados esquecidos, ou seja, qualquer lugar que pudesse guardar um grande tesouro – e uma boa estória.

No Brasil, a série foi exibida pelo SBT e tinha o tema da abertura cantado por Luiz Ricardo, conhecido ainda por ter interpretado um dos tantos Bozos. A musiquinha acabou virando um clássico dos anos 80. Vale recordar e cantar junto:

Aí vem um furacão
Vem emoção
Tem corrida e avião
Tem sensação
Velhos castelos, belos duelos
Ducktales (uh-uh!)
São os caçadores de aventuras (uh-uh!)
Todos eles são grandes figuras (uh-uh!)
Nossos amigos enfrentam
Mas há perigos, e afugentam
Tudo isso acontece em Ducktales (uh-uh!)
São os caçadores de aventuras (uh-uh!)
Todos eles são grandes figuras (uh-uh!)
Por isso a garotada só quer Ducktales (uh-uh!).

7 de set. de 2008

O dia da dependência

Uma tarde inteira de domingo sem futebol na tevê, sem rodada do Campeonato Brasileiro, e só porque a Seleção Canarinho – mais conhecida ultimamente como o time do Dunga ou da CBF – joga hoje à noite contra o Chile, em Santiago, pelas Eliminatórias para a Copa do Mundo. Para os que são dependentes desse tipo de jogo (e eu sou um deles), passar por essa abstinência forçada é mais difícil do que se virar nos trinta dentro da banheira do Gugu.
O fato é que o domingo da Independência, sem a minha querida bola rolando, me fez pensar, curiosamente, em como sou muito dependente de certas coisas – coisas das quais não consigo me libertar nem com o famoso grito do Ipiranga.
Sou dependente da música dos Beatles, das almôndegas que minha mãe prepara como ninguém, dos papos vascaínos com meu pai, dos cartões virtuais que recebo diariamente da minha namorada, dos flashpops que não me saem da cabeça enquanto não os decifro, das lembranças coloridas (com ombreiras e xuquinhas) da infância, das doses semanais de cinema, das camisetas temáticas que adoro comprar e exibir, das fotografias que tiro quando visito um lugar novo, das bobagens que falo com os amigos mais próximos, dos jornais que leio todas as manhãs, dos encontros e desencontros da novela das oito, dos repórteres vesgos que deixam as celebridades vermelhas (de raiva, às vezes), dos vídeos raríssimos no Youtube, das notícias disneyanas de Orlando, do meu inseparável mp3, das últimas notícias dos outros no Orkut...
Sou dependente disso tudo e muito mais. E, como bom torcedor brasileiro, com muito orguuulhoooo e muito amoooor. A verdade verdadeira, preto no branco – ou amarelo no verde –, é que não tenho a menor vontade de dar o grito do Ipiranga. O meu berro é outro. Dependência ou...

3 de set. de 2008

Mãos dadas

A sala de espera do consultório médico, uma pequena tevê ligada na Globo, no Mais você (da Ana Maria Braga), e eu, a poucos minutos de fazer meu teste ergométrico anual. A receita de um bolinho de feijoada, uma entrevista com a "favorita" Mariana Ximenes e o Louro José contando estória. Entre uma amenidade e outra, a Ana Maria exibiu um vídeo, provavelmente descoberto no maravilhoso mundo do Youtube. Os personagens principais: a menina Natalie Gilbert, de 13 anos; o técnico do Portland Trail Blazers, Mo Cheeks; e uma platéia de mais de 20 mil pessoas. Depois do filminho, a loura começou a falar de bons exemplos, solidariedade, liderança... Nem precisava. As imagens já diziam tudo. Ah, o meu exame? No meio do teste, a esteira acelerou e minhas pernas cansaram – mas o coração vai bem, obrigado.

1 de set. de 2008

O nevoeiro

Hoje é o primeiro dia do Ultramuito. As coisas ainda estão como no início do ótimo e surpreendente O nevoeiro: uma neblina cobre tudo, escondendo as muitas "surpresas". Você não sabe o que vai sair dali. Bom, ainda não sei o que vai sair do Ultramuito. Deste primeiro post, poderia sair uma lagosta de R$ 150,00 à Cacciola, mais uma medalha do Michael Phelps ao som de "Ilariê" ou até mesmo uma notícia mais relevante, do tipo "Atriz de 'High School Musical' é clicada na pedicure em LA". A única coisa que não sairia daqui de jeito nenhum são ingressos no setor vip pro show da Madonna. Estão esgotados.
É, acho que vou ficar mesmo com O nevoeiro, filme de Frank Darabont inspirado na obra de Stephen King. De início, o filme parece ser mais um exemplar do gênero criaturas-atacam-gente-numa-cidadezinha-norte-americana. Sabe aquele jeitão de filme B? Ok, ele é isso também. E, se fosse "apenas" isso, já seria um filme eficiente – porque assusta. Mas o roteiro, que nos apresenta um grupo de pessoas presas (e cheias de medo, muito medo) num supermercado, é mais cruel do que se imagina. Uma fala do personagem Ollie Weeks (interpretado por Toby Jones) dá alguma idéia do que esperar de O nevoeiro: "Deixe todo mundo no escuro e assustado e as regras se vão. As pessoas vão recorrer a quem quer que ofereça uma solução. Somos fundamentalmente insanos como espécie. Coloque gente suficiente num quarto e é só uma questão de tempo até cada metade começar a imaginar maneiras de matar a outra". Se você achou isso perverso, ainda não viu nada. Mas pode ser que veja, se for ao cinema. Ou se o nevoeiro dissipar.