Mesmo quando criança, nunca fui fã inveterada da Xuxa – não comprava roupas dO Bicho Comeu e jamais manifestei a vontade de participar do programa, a que só assistia de vez em quando (e mais por causa dos desenhos). Conhecia as músicas, via alguns filmes: o básico, e olhe lá. Mas, como qualquer filha dos oitenta, cresci com o “Ilariê” tocando em um ouvido e a ladainha dos detratores da Xuxa (e de apresentadoras louras em geral) papagaiando no outro. As beldades – com botas maiores do que seus shortinhos – “erotizavam precocemente” as crianças, diziam. As minissaias de couro com saltões eram ícones fetichistas, resmungavam. Essa loura já até fez filme de sacanagem com um “baixinho”, sussurravam. Enquanto isso as crianças – que, na época, nunca tinham ouvido a palavra “fetichista” na vida e não tinham uma ideia lá muito concreta do que pudesse ser “erotizar” – só queriam defender o time das meninas (ou dos meninos) no palco, ter sua carta lida no ar, garantir as figurinhas que faltavam no álbum, vencer o Baixo Astral, pintar um arco-íris de energia e mandar um beijo pra minha mãe, pro meu pai e pra você. Ganhando prêmio em brinquedo, é claro.
Talvez meus olhos de menina estivessem fechados para essa tal “ultraerotização” da infância dos oitenta; talvez eu não visse o símbolo perigosíssimo que um homem vestido de tartaruga representava, a entidade perversa que uma nave espacial sugeria e o aspecto fálico que ombreiras pontiagudas continham – vai saber. Só sei que hoje, em nossos tempos sem apresentadoras ombrudas na TV, o arco-íris é outro. Crianças de dez, onze, doze anos têm ideias bem diferentes das antigas sobre o que sejam jogos de meninas e meninos – e o prêmio não é em brinquedo. No play, no parque, na rua, na sala de aula, exibem pulseirinhas docemente coloridas que, uma vez arrebentadas por outrem, não levam a uma queixa soluçante para a mãe ou professora (“E...le... es...tra...gou... mi... nha... pul...sei...ra! snif, snif...”), e sim a uma prendinha básica a ser paga pelo arrebentador de pulseiras (ou pela vítima do cujo). Coisas leves, de acordo com a cor da pulseirinha trucidada: dar beijo de língua, mostrar os seios, fazer dança erótica, sexo oral, sexo anal, sexo “propriamente dito”...
Não sei se é possível comentar o fato. Não sei se precisa. É preciso, porém, recapitularmos em que momento o elo foi perdido; por que se rompeu aquilo que ligava a infância à imagem de inocência. E por que foi fabricado um novo elo, atando perigosamente as brincadeiras de criança àquelas próprias dos adultos. Não, não foram os 1980s a cena do crime – ou eu teria presenciado pique-pegas bem menos lúdicos nos recreios de escola. Foi (tem sido) mais recentemente, no play, no parque, na rua, na sala de aula, debaixo de nossos narizes, que a (quase) inocente “pêra, uva, maçã, salada mista – o que você quer, sem eu dar nenhuma pista?” vem se transformando num papai-e-mamãe direto, sem rodeios, sem ilusões. O que, eventualmente, vem transformando crianças em papais e mamães diretos, com menos ilusões ainda. Trocando aquilo que eram pelo que ainda não deveriam ser; aquilo que merecem pelo que (inadvertidamente) desejam. Não é uma troca justa; não há pote de ouro algum no fim de um arco-íris não autêntico, que desmancha nos dedos. E não há terra alguma para além do arco-íris que tanto afagam. Pelo menos não uma como o lar. O que está se arrebentando na infância, no mundo, não é (só) algo físico ou palpável como as coloridas pulseirinhas de silicone; mas – assim como elas –, uma vez que se arrebenta, não tem mais volta.