31 de mar. de 2010

Além do arco-íris

Mesmo quando criança, nunca fui fã inveterada da Xuxa – não comprava roupas dO Bicho Comeu e jamais manifestei a vontade de participar do programa, a que só assistia de vez em quando (e mais por causa dos desenhos). Conhecia as músicas, via alguns filmes: o básico, e olhe lá. Mas, como qualquer filha dos oitenta, cresci com o “Ilariê” tocando em um ouvido e a ladainha dos detratores da Xuxa (e de apresentadoras louras em geral) papagaiando no outro. As beldades – com botas maiores do que seus shortinhos – “erotizavam precocemente” as crianças, diziam. As minissaias de couro com saltões eram ícones fetichistas, resmungavam. Essa loura já até fez filme de sacanagem com um “baixinho”, sussurravam. Enquanto isso as crianças – que, na época, nunca tinham ouvido a palavra “fetichista” na vida e não tinham uma ideia lá muito concreta do que pudesse ser “erotizar” – só queriam defender o time das meninas (ou dos meninos) no palco, ter sua carta lida no ar, garantir as figurinhas que faltavam no álbum, vencer o Baixo Astral, pintar um arco-íris de energia e mandar um beijo pra minha mãe, pro meu pai e pra você. Ganhando prêmio em brinquedo, é claro.
Talvez meus olhos de menina estivessem fechados para essa tal “ultraerotização” da infância dos oitenta; talvez eu não visse o símbolo perigosíssimo que um homem vestido de tartaruga representava, a entidade perversa que uma nave espacial sugeria e o aspecto fálico que ombreiras pontiagudas continham – vai saber. Só sei que hoje, em nossos tempos sem apresentadoras ombrudas na TV, o arco-íris é outro. Crianças de dez, onze, doze anos têm ideias bem diferentes das antigas sobre o que sejam jogos de meninas e meninos – e o prêmio não é em brinquedo. No play, no parque, na rua, na sala de aula, exibem pulseirinhas docemente coloridas que, uma vez arrebentadas por outrem, não levam a uma queixa soluçante para a mãe ou professora (“E...le... es...tra...gou... mi... nha... pul...sei...ra! snif, snif...”), e sim a uma prendinha básica a ser paga pelo arrebentador de pulseiras (ou pela vítima do cujo). Coisas leves, de acordo com a cor da pulseirinha trucidada: dar beijo de língua, mostrar os seios, fazer dança erótica, sexo oral, sexo anal, sexo “propriamente dito”...
Não sei se é possível comentar o fato. Não sei se precisa. É preciso, porém, recapitularmos em que momento o elo foi perdido; por que se rompeu aquilo que ligava a infância à imagem de inocência. E por que foi fabricado um novo elo, atando perigosamente as brincadeiras de criança àquelas próprias dos adultos. Não, não foram os 1980s a cena do crime – ou eu teria presenciado pique-pegas bem menos lúdicos nos recreios de escola. Foi (tem sido) mais recentemente, no play, no parque, na rua, na sala de aula, debaixo de nossos narizes, que a (quase) inocente “pêra, uva, maçã, salada mista – o que você quer, sem eu dar nenhuma pista?” vem se transformando num papai-e-mamãe direto, sem rodeios, sem ilusões. O que, eventualmente, vem transformando crianças em papais e mamães diretos, com menos ilusões ainda. Trocando aquilo que eram pelo que ainda não deveriam ser; aquilo que merecem pelo que (inadvertidamente) desejam. Não é uma troca justa; não há pote de ouro algum no fim de um arco-íris não autêntico, que desmancha nos dedos. E não há terra alguma para além do arco-íris que tanto afagam. Pelo menos não uma como o lar. O que está se arrebentando na infância, no mundo, não é (só) algo físico ou palpável como as coloridas pulseirinhas de silicone; mas – assim como elas –, uma vez que se arrebenta, não tem mais volta.

27 de mar. de 2010

Corrida maluca

Outro dia me perguntaram se estava tudo bem por aqui. E eu, quase automático, respondi que sim, que tudo corria bem, que a vida seguia em frente, ligeira, ligeira, e que a gente tentava acompanhá-la. E aí me dei conta do “problema”, se isso for um problema: o tal corria. O mundo tem girado tão rápido que às vezes me deixa suficientemente tonto para não gozar – ou gozar menos do que poderia – a parte do tudo e do bem.
Meu pai fez sessenta anos na última semana; uma (melhor) amiga casou há quinze dias e já está com um filhote na cabeça (só na cabeça, que eu saiba...); outra, dos tempos da escola, deixou o Brasil, fez um pit stop nos States e agora aparece em Israel, casadíssima, grávida e feliz... Todas boas, ótimas notícias, mas que correm tão apressadas quanto os 140 caracteres do Twitter; basta um clique, uma piscadela, e a página da vida é atualizada!...
E eu, do lado de cá, tento resistir. Vou levando a vida com os pés no freio, enquanto a vida se encarrega do acelerador. Leio meus livros com a atenção que cada vírgula merece; faço as vezes do professor careta e chato para meus alunos “moderninhos”, cheios de pressa de deixar a infância; e vivo um namoro romanticamente sossegado, certo de que um roteiro bem escrito só vira bom filme com uma direção sensível e cuidadosa.
Não estou – não estamos – aqui para vencer uma corrida maluca; não estamos aqui nem mesmo para correr. A vida em si já é afobada demais, abarrotada de prazos, cobranças e outros badulaques desnecessários. Vamos com calma, aproveitemos o tudo e o bem nosso de cada dia. Olhemos a paisagem, seus detalhes, curtamos – e não encurtemos – o caminho. O corre-corre, a gente deixa pro Dick Vigarista, que, bem sabemos, não vai ganhar nenhum “grande prêmio”, a não ser as risadinhas do Muttley...

21 de mar. de 2010

As cinco frases

Domingo passado, na Revista dO Globo, veio uma entrevista com Claudia Burlá, geriatra respeitada e médica paliativa (medicina paliativa – que aparece de passagem, inclusive, na atual novela das nove – é aquela que se dedica a melhorar a qualidade de vida das pessoas com doenças incuráveis). Em dado momento, ela contou o caso de uma paciente com demência, cuja filha morava no exterior devido, em grande parte, ao mau relacionamento que tinha com a mãe. A médica ligou para a filha da paciente e tascou: “Você não vai ter outra chance de resolver as pendências com sua mãe. Posso pôr o telefone no ouvido dela para você falar cinco frases: me desculpe, eu te desculpo, muito obrigado, eu te amo e adeus”. A mulher concordou, a reaproximação foi feita e, no dia seguinte, a doente morreu com esse capítulo devidamente encerrado.
O que mais me tocou na entrevista foi o poder de síntese de Claudia Burlá ao propor as cinco frases essenciais à filha pródiga. Se esse script foi de fato seguido, em uma conversa que provavelmente não durou nem uma hora, talvez nem meia, talvez nem quinze minutos – dado o estado crítico da paciente –, falou-se muito mais do que normalmente se falaria em dez anos. Às vezes, numa vida inteira. Nessas cinco frases, de no máximo três palavras cada uma, está o mais básico dos básicos de qualquer relação humana bem-sucedida: a autocrítica, a compaixão, a gratidão, o amor e a consciência de que todo segundinho merece um fecho redondo, de ouro, para o caso de ser um epílogo. O sábio roteiro de morte feito pela dra. Burlá é um dos mais belos, objetivos e completos roteiros de vida. Nem todos os to-bes de Shakespeare, nem todos os condores de Castro Alves ou a oratória de Vieira chegam perto do impacto dessas onze palavras. Tivesse eu poder, a dra. Claudia vestiria o fardão da ABL só por elas. E não haveria chá no mundo que as pagasse.
Sempre me angustiou a ideia de uma despedida tão súbita que nem desse ocasião a essas onze palavras, ou pior: que pairasse como uma lembrança negativa, com um “a culpa é sua”, um “você não tem mesmo jeito” ou até um mero “que saco!” suspenso no ar. Suspenso eternamente, sem nenhuma cena do capítulo seguinte, nenhum diálogo posterior. Uma despedida não feita, malfeita. Hoje eu sei exatamente o que espero: que quaisquer despedidas (todas as provisórias, todas as definitivas) sejam permeadas por aquelas cinco frases, por aquelas onze palavras, e naquela mesma ordem. Primeiro, a admissão dos nossos erros – porque nenhuma aproximação é feita com uma pedra na frente. Depois, a remoção gratuita (e irreversível) das pedras alheias – porque um perdão não concedido encrava no peito como uma unha que não cortaram bem. Em seguida, o reconhecimento de que o outro tem muito mais delícias do que pedras. Quando a (re)conquista já for total, nada melhor do que celebrar o momento com a frase mais inteira de todas. É o único modo de deixar os laços tão apertados que nem a quinta frase consiga parti-los. Ever.
Claro que o objetivo não é repetir as sentenças da dra. Claudia a cada instante, como um mantra enlouquecido. Mesmo porque, se não forem sinceramente sentidos, dizer os trechos a toda hora será mera canastrice. A intenção é que se os diga numa frequência saudável, sempre que as circunstâncias pedirem; nem engoli-los, nem cuspi-los a torto e a direito. Mas a intenção, sobretudo, é tirar o monopólio dos lábios e deixar essas frases penduradas nos olhos, nos braços, na vida, de maneira que a voz não tenha a exclusividade de dizê-las. E mais sobretudo ainda: é dizê-las mesmo assim, mas antecipando-as com exemplos tão concretos que falar nem seria preciso.

16 de mar. de 2010

Rapsódia in blue

Uma das maiores alegrias para o cinéfilo é sair da sala de projeção segurando uma pérola inesperada, recém-descoberta. Na última semana, eu e Fábio fomos os premiados. Era filme que eu, na verdade, há muito tempo perseguia, mas cujo horário só agora cruzou os meus: o ultra-adorável (500) dias com ela, estrelado por Joseph Gordon-Levitt (clone moreno de Heath Ledger) e Zooey Deschanel (clone exato de Katy Perry, com aqueles olhões espantosos que afogam a tela de azul).
(500) dias com ela não é apenas um filme fofo-alternativo como os igualmente deliciosos Cashback, Pequena Miss Sunshine e (o meu adorado) O fabuloso destino de Amélie Poulain, por exemplo. Trata-se, por que não dizer, de uma pequenina rapsódia. Rapsódia, na música, é uma colagem de melodias populares, juntinhas ao sabor do artista e não presas numa estrutura rígida. Guardadas as devidas proporções, é a definição perfeita para o simpático longa de Marc Webb. Em pouco mais de uma hora e meia de projeção, há um bocadinho de muita coisa: o recurso do narrador que reforça o tom de fábula da ação; a apresentação retrô da magnética Summer, personagem de Zooey Deschanel (por sinal, tanto o uso do narrador quanto as cenas biográficas de Summer lembram bastante o clima de Amélie Poulain); os episódios divididos pelo número de dias passados desde o primeiro encontro do casal – número este que surge ora numa tela alegremente “summer” (para os momentos felizes do protagonista Tom), ora num cenário cinzento (para seus dias de bola murcha); o musical saborosíssimo que resume o estado de espírito de Tom após a primeira noite de amor com Summer; a hilária recriação do cinema europeu cabeça que, por outro lado, retrata um protagonista confuso e deprimido... Estilices para dar e vender. Cada minuto é um flash. Destaque também para a sacada genial de, a certa altura, dividir a tela entre a metade da expectativa (de Tom) e a da realidade (do encontro). Simultâneas e ligeiramente diferentes, as versões do que teria sido e do que foi dão o tom exato do longa: o interesse do roteiro não é nem açucarar com soluções fáceis, nem azedar a vida dos apaixonados, e sim extrair desse embate sua necessária (e sustentável) leveza.
Boa parte da leveza de (500) dias com ela mora na onipresença do azul, adequadamente identificado com o “céu de verão” que a mocinha representa. Nos olhos oceânicos de Summer, em quase 100% dos figurinos da personagem, nos detalhes de sua casa, nas roupas de todos os figurantes que dançam com Tom na cena musical – lá está a cor que, em inglês, simboliza a tristeza, mas que visualmente funciona como uma lufada fresquinha. A dualidade do azul (e de Summer) é a mesma do filme: paradisíaco e algo tristonho, um quê de celestial e um quezinho de aflitivo, muito de masculino e muitíssimo de delicado, bastante de jovem e de clássico. Foi assim como ver o mar – a primeira vez, este ano, em que saímos com os olhos brilhando na certeza de termos inaugurado nosso próximo top ten. Imperdoável foi a ausência de (500) dias no top ten da Academia, ou a falta de uma indicação, pelo menos, para melhor roteiro original. Como disse o Fábio: paciência. Venceu o bege-areia, não era ano de azul no Oscar. Mas aqui em nossas plagas, distantes das pelejas americanas e já suficientemente escaldantes, nada melhor do que refrescâncias coloridas onde seja impossível não mergulhar.

10 de mar. de 2010

Valeu por John Hughes

Não foi uma noite daquelas. Sem números musicais grandiosos, sem as paródias dos filmes indicados (que o Billy Crystal fazia como ninguém), sem as estrelas da música pop soltando a voz pelas melhores canções, sem aqueles velhinhos premiados pelo conjunto da obra recebendo seus troféus no palco, ao vivo, e – claro – sem a vitória de um gigante hollywoodiano como Avatar, a cerimônia do Oscar ficou devendo.
Estava tudo muito low profile, contido, correto, básico. Bege demais. Aquele tom de areia que “colore” a maior parte da fotografia do grande vencedor da noite, o superestimado Guerra ao terror. Ok, ok, o filme tem vários méritos: a direção macho-sensível de Kathryn Bigelow; a performance surpreendente de Jeremy Renner, que foge do estereótipo soldado-herói-americano com a mesma habilidade com que desarma bombas; e o roteiro corajoso, que encara um sujeito “viciado” numa droga pesadíssima, a guerra (um sujeito que pode funcionar como a metonímia de uma nação).
Mas, ainda assim, eu preferia Avatar: o filmaço que vai além da nossa dimensão, do nosso mundinho mais ou menos (embora não deixe de falar de nossas mazelas). Seria ótimo ter visto o esforço épico de James Cameron para criar Pandora e os na'vi – uma jornada que durou mais de dez anos – ser reconhecido pela Academia. Não foi. Paciência. O jeito agora é esperar a próxima aventura do autointitulado Rei do Mundo.
O que mais valeu nesse Oscar foram os prêmios justíssimos para Mo’Nique, a mãe-bruxíssima de Preciosa, e Christoph Waltz, o magnético vilão de Bastardos inglórios, além da homenagem, mesmo póstuma, ao genial John Hughes. Foi encantadoramente nostálgico reencontrar aquele clubinho dos anos 80, liderado pela dupla Molly Ringwald e Matthew Broderick, lembrando as pérolas cinematográficas do diretor e roteirista que sintetizou como poucos as nuances de uma geração. De curtir e emocionar adoidado.