Pode-se não gostar de um filme e achá-lo muito bom ao mesmo tempo. Isso foi o que concluí ao assistir a Distrito 9 (produção mais recente de Peter Senhor dos anéis Jackson), por insistência do Fábio, que já namorava o longa há algumas semanas. Não é para estômagos de sangue quente, e por isso não posso dizer que achei propriamente uma delícia a experiência sensorial – embora no roteiro, nos efeitos, na inovação e na coragem a produção seja, sem dúvida, impecável. Seus primeiros trinta, quarenta minutos se aproveitam de nossa nobreza ao mostrarem uma “favela alienígena” no esplendor de seu asco: criaturas repulsivas, barracos nojentos, vacas mortas dependuradas servindo de “berçário” a ovos de ETs, imagens quase fétidas, o horror, o horror. Tudo isso seguido pelas reações físicas não menos desagradáveis que Wikus Van De Merwe (o protagonista “humano”) tem ao se contaminar com o fluido alienígena. A partir daí, vencidas as primeiras náuseas, o filme engrena bonito. Não que haja réstia de beleza nas cenas áridas e violentas, e sim na habilidade fantástica com que se misturam ação, perseguição, documentário, ficção científica, política, heroísmo e denúncia social, numa história que encarna um perfeito mestiço de Cidade de Deus com A bruxa de Blair e A mosca.
Mestiçagem, por sinal, é a alma do filme. Não apenas seu formato representa a fusão de vários gêneros (tão bem tecida que não notamos o privilégio de um ou outro): seu conteúdo é um grito pela miscigenação dos pensamentos, dos quereres. Numa proposta subentendida, não há meio de compreendermos e respeitarmos o alheio sem, de certa forma, nos misturarmos a ele – emprestando um pouco de sua vida à nossa vida, de seus olhos aos nossos olhos. Propositalmente, Distrito 9 nos leva a detestar os ETs enquanto Wikus Van De Merwe é 100% terráqueo, e simpatizar com eles quando o protagonista começa a se tornar fisicamente igual aos “camarões” (nome pejorativo dado aos aliens) e a procurar abrigo no mesmo gueto que antes destruía. Wikus nunca é tão plenamente humano como quando seu DNA já é, em grande parte, alienígena, uma vez que a vivência do perseguido resgata nele a empatia que deveria nos definir por essência. Também de propósito, e em contraste com a situação de Wikus, estão representadas na história diversas maneiras (anti)“humanas” de ser em relação ao outro: a destruição do diferente por razões “científicas” (como nas antigas experiências nazistas), a exploração comercial, a devoração literal das qualidades alheias (encarnada pela gangue nigeriana liderada por Obesandjo, que pratica “alienfagia”). E, para reforçar a ideologia antipreconceito nem tão subliminar, o cenário escolhido para o estacionamento da nave-mãe dos ETs (e para a criação do Distrito 9) não é Nova Iorque, Washington ou qualquer outro top ten de filme-catástrofe, e sim Johannesburgo, na África do Sul – terra que ainda manca pelas sequelas do apartheid.
Distrito 9 nos causa repulsa, sim; mas a aversão física que abre o longa se esvai, para dar lugar ao nojo social. De nós mesmos. De como o sentimento que nos leva a proteger nossa espécie pode nos transformar em uma outra – no mau sentido. De como a genética que nos distingue pode, facilmente, servir de pretexto à frieza que nos nega. De como jogamos fora, em nome daquilo que nos humaniza visualmente, aquilo que nos humaniza efetivamente – e que é tão essencial quanto (para lembrar a velha raposa do Pequeno príncipe) invisível aos olhos. De como nós também podemos ser o inferno dos outros.