31 de out. de 2009

Os outros

Pode-se não gostar de um filme e achá-lo muito bom ao mesmo tempo. Isso foi o que concluí ao assistir a Distrito 9 (produção mais recente de Peter Senhor dos anéis Jackson), por insistência do Fábio, que já namorava o longa há algumas semanas. Não é para estômagos de sangue quente, e por isso não posso dizer que achei propriamente uma delícia a experiência sensorial – embora no roteiro, nos efeitos, na inovação e na coragem a produção seja, sem dúvida, impecável. Seus primeiros trinta, quarenta minutos se aproveitam de nossa nobreza ao mostrarem uma “favela alienígena” no esplendor de seu asco: criaturas repulsivas, barracos nojentos, vacas mortas dependuradas servindo de “berçário” a ovos de ETs, imagens quase fétidas, o horror, o horror. Tudo isso seguido pelas reações físicas não menos desagradáveis que Wikus Van De Merwe (o protagonista “humano”) tem ao se contaminar com o fluido alienígena. A partir daí, vencidas as primeiras náuseas, o filme engrena bonito. Não que haja réstia de beleza nas cenas áridas e violentas, e sim na habilidade fantástica com que se misturam ação, perseguição, documentário, ficção científica, política, heroísmo e denúncia social, numa história que encarna um perfeito mestiço de Cidade de Deus com A bruxa de Blair e A mosca.
Mestiçagem, por sinal, é a alma do filme. Não apenas seu formato representa a fusão de vários gêneros (tão bem tecida que não notamos o privilégio de um ou outro): seu conteúdo é um grito pela miscigenação dos pensamentos, dos quereres. Numa proposta subentendida, não há meio de compreendermos e respeitarmos o alheio sem, de certa forma, nos misturarmos a ele – emprestando um pouco de sua vida à nossa vida, de seus olhos aos nossos olhos. Propositalmente, Distrito 9 nos leva a detestar os ETs enquanto Wikus Van De Merwe é 100% terráqueo, e simpatizar com eles quando o protagonista começa a se tornar fisicamente igual aos “camarões” (nome pejorativo dado aos aliens) e a procurar abrigo no mesmo gueto que antes destruía. Wikus nunca é tão plenamente humano como quando seu DNA já é, em grande parte, alienígena, uma vez que a vivência do perseguido resgata nele a empatia que deveria nos definir por essência. Também de propósito, e em contraste com a situação de Wikus, estão representadas na história diversas maneiras (anti)“humanas” de ser em relação ao outro: a destruição do diferente por razões “científicas” (como nas antigas experiências nazistas), a exploração comercial, a devoração literal das qualidades alheias (encarnada pela gangue nigeriana liderada por Obesandjo, que pratica “alienfagia”). E, para reforçar a ideologia antipreconceito nem tão subliminar, o cenário escolhido para o estacionamento da nave-mãe dos ETs (e para a criação do Distrito 9) não é Nova Iorque, Washington ou qualquer outro top ten de filme-catástrofe, e sim Johannesburgo, na África do Sul – terra que ainda manca pelas sequelas do apartheid.
Distrito 9 nos causa repulsa, sim; mas a aversão física que abre o longa se esvai, para dar lugar ao nojo social. De nós mesmos. De como o sentimento que nos leva a proteger nossa espécie pode nos transformar em uma outra – no mau sentido. De como a genética que nos distingue pode, facilmente, servir de pretexto à frieza que nos nega. De como jogamos fora, em nome daquilo que nos humaniza visualmente, aquilo que nos humaniza efetivamente – e que é tão essencial quanto (para lembrar a velha raposa do Pequeno príncipe) invisível aos olhos. De como nós também podemos ser o inferno dos outros.

25 de out. de 2009

Tarantinamente calculado

O típico close no pezinho de alguma mulher, o tema da vingança, a violência brutalmente desenhada e friamente executada, a femme-fatale vestida e maquiada para matar, os diálogos loooooooongos e afiadíssimos, como faca só lâmina, facas só lâmina, revólveres, armas, trabucos, tiros, a cena em que todos se matam, os do bem, os do mal, os coadjuvantes, os figurantes, o sangue, o vermelho, cabeças escalpeladas, a música grandiloquente, morriconeana, que transforma a vida e todo o resto num velho-oeste clássico-trash, as infinitas homenagens ao cinema e as piadinhas metalinguísticas (ambas nos gritando a todo o momento que estamos “apenas” diante da telona, na sala escura, com som surround nos ouvidos e um saco de pipoca amanteigada nas mãos), a história que se faz estória, sem medo nem pudor de envergar um era-uma-vez no início, sem nenhuma gota de constrangimento ao se lixar para os Fatos, para a Verdade (já empoeirada pelo tempo e por tantos outros filmes sobre a Segunda Guerra Mundial), com toda a coragem e umas pitadas de arrogância ao imaginar um caminho delirantemente alternativo, repleto de atalhos (in)críveis, em que judeus são tão cruéis e bárbaros quantos os nazistas, em que os personagens são feitos de papelão e negativo (substância altamente inflamável, aliás), em que Brad Pitt encarna um tenente de sotaque tão divertidamente canastrão quanto improvavelmente verossímil e Christoph Waltz vive um coronel da SS ao mesmo take gentleman e carrasco, um vilãozão até a última raiz do celuloide, capaz de beber leite fresquinho antes de eliminar sem dó nem piedade os “ratos” da casa...
Tudo isso regado a muitíssima pretensão, a uma – saudável – falta de modéstia, a galões de ironia e cinismo, a doses perigosamente exageradas de estilo e autoritarismo faz de Bastardos inglórios um legítimo Quentin Tarantino, um filme que, no frigir dos strudels, vale o Hitler que manda pelos ares.

18 de out. de 2009

Páginas da vida

A novíssima Helena de Manoel Carlos tem me irritado um bocado. É boa filha, boa irmã, boa esposa, boa amiga, modelo de perfeição e profissão (é a top top das passarelas do Brasil e do mundo). Ou seja, Helena não é deste planeta. É do Leblon. E um pouco de Búzios também, aquela praia da Brigitte Bardot. Talvez a única “fraqueza” da moça até aqui, se é que isso é uma fraqueza, tenha sido cair na conversa do José Mayer, “maldição” por que quase todas as Helenas têm de passar...
Ainda bem que, no mundo maravilhoso de Maneco, para cada Helena existe uma Tereza – cheia de humanidade, com qualidades e defeitos, perfeita na sua imperfeição, irresistivelmente de carne, osso e elegância. A tiracolo, a filha Luciana, com jeito de boneca mimada, mas olhos que guardam uma insegurança de quem tateia a vida, de quem é menina demais, de quem sonha com Paris, Nova Iorque, Milão sem dar conta de sua “pequena” avenida Delfim Moreira.
Pequena no tamanho, grande na esperteza é a estrelinha Rafaela, que manipula a mãe (Dora) e quem mais estiver à sua volta. Que ministérios públicos, varas de infância e juízes – preocupadíssimos com o desenvolvimento de nossas crianças de folhetim – não atrapalhem a trajetória de uma personagem que tem tudo para aquecer as águas ainda mornas das praias de Viver a vida. (Pois é: o Ministério Público do Trabalho daqui do Rio, que não deve ter mais o que fazer, notificou Maneco por conta do papel da atriz Klara Castanho, de oito anos. A “recomendação” solicita que o autor tome cuidado com o tipo de personagem designado a atores com menos de 18 anos...).
Voltando à turma com mais de 18, vale aqui outra notificação (última, prometo): aos gêmeos Jorge e Miguel, capazes de nos fazer crer na existência de dois Mateus Solanos. O rapaz (ou rapazes, vai saber), que já tinha ofuscado até os olhos de Maysa, agora brilha na pele de um arquiteto sério, sisudo, cabelo penteado e de um médico de bem com a vida, com o cabelo despenteado e com a namorada do irmão... Ah, só mais uma “recomendação” pro nosso Maneco: manda logo o Jorge pro Canadá! Com passagem só de ida, claro...

12 de out. de 2009

Reinações do narizinho

Dizem por aí, poética e cientificamente, que o olfato é o sentido mais ligado à memória. Acredito. Se cruzo na rua com algum perfume que já andou frequentando minha vida, é um embarque imediato para as mesmas sensações da época em questão. A lembrança vem inteirinha na boca (como aquelas frases que a gente prepara na cabeça, mas não diz: ficam penduradas na língua). Tem melhor gatilho para um pensamento antigo do que um perfume? Pois hoje, Dia das Crianças, é dia de pensamentos antigos. Não “antigos” de obsoletos e embolorados, pelo contrário: “antigos” de misteriosamente mágicos, como livros que narram nossa própria mitologia. Nossa história particular não está nos álbuns de fotos que guardamos na gaveta, palpáveis e visíveis. Está no álbum de pensamentos que montamos a vida inteira, tão imaterial e flutuante quanto os cheiros queridos que nos ajudam a folheá-lo.
Meu álbum de infância, por exemplo, tem o cheiro das provas e trabalhos de escola rodados no mimeógrafo, cheiro forte do álcool, da tinta roxinha. Minha infância tem cheiro de bolo assando na cozinha de Vó (portas fechadas, talvez para eu não o atacar antes da hora). Dos buquês de jasmim jasminando no quintal (boêmios, durante a noite). Do azeite e da cerveja de Pai almoçando em casa. Da acetona de minha irmã fazendo a unha. Do Acqua Fresca que ela usava. Do Poison (po-a-zom, à moda francesa) que Mãe e Vó usavam. De sereno – entidade misteriosa até hoje. Dos cavalinhos da praça aonde Mãe me levava todo domingo. Do plástico adocicado das bonecas. Da alfazema que se espalhava no apartamento da primeira professora de teclado. Do ar molhado pelo umidificador de ambiente. Do ar mofado do hotel onde nos hospedávamos em São Paulo. Das aulas de arte da quinta série, coloridas de tinta. Das aulas de natação sei lá de que ano, ardidas de cloro. Do xampu Johnson & Johnson, que “não ardia” na vista. Dos livros de Monteiro Lobato que tinham sido de Mãe. Dos livros de Monteiro Lobato novinhos da loja. Das capas dos elepês. Do Colubiazol, remédio de garganta cor de ferrugem que sujava TUDO num raio de cinco quilômetros. De bacalhau sendo preparado e empesteando a casa, para meu desespero. De geleia de mocotó Inbasa, sonho de doce de leite e pirulito de morango. Das revistinhas que Mãe comprava às dúzias no jornaleiro. Das broinhas no lanche da tarde, enquanto passava ZY Bem Bom na Bandeirantes. Das minhas tias-avós. De chuva, de terra, de uma na outra. De tantas pequenices. De tantos etcéteras.
É claro que cada narizito deste mundo terá seu próprio repertório de etcéteras e pequenices, mas todos, nos feudos de memória, reinam. Reinam no sentido lobatiano da travessura (quantas vezes terão se metido onde não eram chamados, como o meu – guloso do bolo – na cozinha de Vó?) e no sentido monárquico do comando. Sim, o gosto de cada guloseima antiga também é importante – mas aí é só o mesmo olfato trabalhando em outro escritório. Tanto os aromas dominam as lembranças e a elas se confundem que ouso duvidar até de Shakespeare, quando, pela boca de Julieta, dá a entender que a rosa teria o mesmo perfume se fosse batizada com outro nome. Qual nada. A rosa não tem o mesmo perfume nem sendo rosa. Para cada um ela será diferente; cada um a registrará diferente em seu catálogo de vida. Ser, não ser, é tudo uma questão de qual narizinho está no comando do olho curioso, do ouvido xereta. É só com seu aval de rei que uma lembrança pode ser embrulhada sempre num sorriso feliz.

6 de out. de 2009

Há algo de bom no reino da Dinamarca

Há algo de bom em saber que a cidade onde vivo vai receber as Olimpíadas, em escutar aquele gringo ler gringamente “Rio de Janeiro”, em explodir de alegria com meu pai e minha mãe como se fosse gol do Vasco em final de campeonato, em esquecer por um instante as mazelas tipicamente brasileiras e cariocas para sorrir com o choro do presidente, a emoção do governador e a vibração do prefeito, em sentir o orgulho verde e amarelo de um povo castigado por poucas e boas, muitas e más, que mal sabe onde ficam Chicago, Madri ou Tóquio.
Há algo de bom nisso tudo, como há algo de muito melhor em ter a esperança de ver as águas despoluídas, os morros mais verdes, a cidade mais limpa, o metrô, o trem, o ônibus chegando aos quatro cantos, os quatro cantos menos desiguais, mais próximos, sem facções, comandos, milícias, apenas com gente, gente boa e da paz, da Zona Norte, da Zona Sul, do Oiapoque, do Chuí, do mundo inteiro, os mundos misturados, trocando “aquele abraço” que só o carioca sabe dar.
Há algo de bom – e imprescindível – em fazer parte de uma sociedade a partir de agora mais atenta, bisbilhoteira e fiscalizadora. Salve, salve, começa hoje o Big Brother Rio 2016! Porque não queremos ver tanta esperança genuinamente verde ser desmatada por certos inoportunistas, aqueles tantos que já conhecemos de outros carnavais – e olha que, de carnaval, nós entendemos... Não podemos deixar que transformem (mais) uma oportunidade de ouro, ouro olímpico!, num maracanazzo de chances desperdiçadas. Não vamos deixar que nossos sonhos, e tudo que há de bom neles, se tornem uma realidade superfaturada de pesadelos em 2017, 2018, 2019...
Se houve – e houve, eu quero acreditar – algo de bom no último 2 de outubro, na distante e tão inesperadamente próxima Copenhague, tem de haver algo de ainda melhor no Rio, em 2016. E, por extensão, em todo o Brasil. Só assim nossa esperança terá sido saudável. Só assim os céticos e pessimistas de plantão vão dizer (felizes, eu espero) que estavam errados. Só assim vou ter certeza de que não fui bobo ou ingênuo ao reescrever a famosa frase de Hamlet, que, sei lá por que motivo, serviu de inspiração para este texto: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.