30 de dez. de 2008

Dez resoluções para o Ano Novo

1) Não prometo comer mais legumes, verduras e fibras. Frango grelhado? Não, obrigado, não gosto de isopor sem tempero. Sopinha, caldinho? De leve, já basta o meu corpinho magrelo! Pão salgado, pão de queijo, pão doce recheado, caramelado de açúcar! Eu quero um! Mais um!
2) Não prometo fazer exercícios regular nem irregularmente, muito menos voltar aos turbinados aparelhos de musculação, que têm a mania de querer transformar Esqueletos em He-Mans e Nhonhos em Madrugas.
3) Não prometo ver todos os 1001 filmes a que temos de assistir antes de morrer. Godard, Glauber, Kieslowski? Passo. Faster, pussycat! Kill! Kill! Hã? Repasso.
4) Não prometo ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido só para checar a existência das famigeradas madeleines. Eu acredito, sinceramente, que elas estejam lá, sãs e salvas, dentro dos livros. Aliás, Proust, nunca duvidei disso.
5) Não prometo assistir a todos os jogos do Vasco na Série B – não por infidelidade, apenas por sobrevivência. Como muitos serão realizados aos sábados, a Fernanda me esganaria se eu a trocasse, por exemplo, pelo eletrizante "clássico" contra o Campinense, da Paraíba. Me esganaria mesmo, meu bolinho de bacalhau?
6) Não prometo desligar a tevê quando começar a nona (!) edição do Big Brother Brasil. Não consigo resistir àquela espiadinha básica. Além do mais, papai já comprou o pay-per-view. Salve, salve, Pedro Bial! U-hu!
7) Não prometo ser aquela-professorinha-Helena com os meus queridíssimos alunos. Os pestinhas vão ter que guardar os hormônios na mochila e dar um pouquinho de atenção aos substantivos, aos verbos, às orações subordinadas... Se não andarem na linha, vou bancar o professor aloprado e tocar o carrossel do terror!
8) Não prometo deixar de ser o bom e velho revisor cricri, saudavelmente neurótico, que corrige até vírgula em itálico e rastreia os espaços duplos ao final de cada leitura. Erros de concordância, letrinhas trocadas, frases ambíguas, tremei!
9) Não prometo abrir a mão, a carteira, muito menos a Caixa-Forte. Como bom herdeiro dos MacPatinhas, continuarei minha saga de sovinice, guardando cada moedinha, cada lembrança colorida dos meus 28 anos de vida! Cada beijo, cada abraço, cada filme, cada canção, cada novela, cada livro, cada viagem, cada passeio, cada bobagem, cada vitória...
10) Não prometo interromper o envio de e-mails e scraps publicitários sobre as últimas novidades do Ultramuito. Ainda vou chatear bastante meus amigos e familiares, inclusive o leitor que, heroicamente, chegou a esta derradeira resolução de Ano Novo. Meus parabéns! Você merece um 2009 ultramuito feliz!

28 de dez. de 2008

War

Em A vida é bela (um dos melhores filmes que retratam a Segunda Guerra), o mote é o jogo: adulto judeu transforma campo de concentração em tabuleiro e se desdobra para que criança judia veja como brincadeira todo o horror que a envolve. Em O menino do pijama listrado, o mote é também o jogo – que desta vez, porém, tem como tabuleiro o próprio filme, e como peças todos os personagens. Não é jogo de damas (um dos divertimentos freqüentes do protagonista Bruno), no qual só há diferença de lado e de cores – branco e preto, sim e não. Na verdade, é xadrez o que ali se joga: além da diferença de lado e de cores, há distinção clara de papéis entre peças da mesma cor. Ainda que lutem no mesmo “time”, nem todas as pecinhas arianas podem se mover em qualquer direção. E pouquíssimas sabem exatamente o quanto terão de sacrificar em nome de seu rei – ou Führer.
Bruno, o menino “nazista” que faz amizade com o pequeno judeu anunciado no título, não passa de um peão nessa partida. Tatibitateando no mundo deliróide criado por Hitler, só pode avançar uma casa por vez. É aquele que não tem malícia para ver além, aquele que não entende – com um não-entendimento que lembra o da jovem Anna, de A culpa é do Fidel, mas de um jeito muitíssimo menos bem-humorado e muito mais ingênuo. Apesar de Bruno aparentemente estar no time privilegiado, acaba sendo, como bom peão, um dos primeiros e mais indefesos perdedores: é forçado a deixar sua casa, seus amigos, seus avós, cumprindo sua cota semiconsciente de sacrifícios (no que também lembra Anna). Inocente, mas não santo. Imperfeito, mas inocente. Uma criança de oito anos, tão perdida em seu universo nazista quanto Shmuel, o amiguinho “empijamado” da mesma idade. Ambos peões, cada um em sua própria “equipe”, não admira que se tornem as peças mais próximas entre si. Apenas algumas casas do tabuleiro – apenas alguns arames de cerca – os separam. Encaram-se, observam as diferenças óbvias, mas não compreendem as diferenças impostas.
Menos inocentes do que (mas tão iludidas quanto) Bruno, a mãe e a irmã do menino realizam outros movimentos na peleja. Gretel, de doze anos, é o cavalo; a juventude domada, lavagem-cerebrada por Hitler. Elsa, a mãe, é a dama que caminha em todas as direções: o comodismo, o incômodo, a dúvida, a certeza, o desespero. Com cada elemento em sua fileira, cada um no seu quadrado, o filme automaticamente ganha duas características: 1) o caldo, que podia entornar a qualquer momento em pieguice ordinária, não entorna, já que o enredo tem a precisão de uma disputa de xadrez; 2) o desfecho é previsível para quem analisa o jogo posto, sem com isso deixar de ser emocionante. Adivinha-se friamente o que está por vir; sofre-se humanamente pelo que será impossível evitar. Tragédia anunciada. O movimento final da batalha e, depois, o silêncio. Xeque-mate.

24 de dez. de 2008

Feliz você para o Natal

Não desejarei feliz Natal. Não há por que desejar feliz Natal. Afinal, o Natal é sempre feliz. Desejar feliz Natal é como desejar chuva molhada, sol quente ou neve fria. Lembra a frase de Shakespeare – “Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te”? Pois é: desejar feliz Natal é quase admitir que o Natal, saindo de sua natureza, saindo de si mesmo, pudesse absurdamente ser de outra forma, de outra maneira que não – óbvio! – feliz.
Ora, como haveria de ser o Natal, senão feliz, feliz, feliz?... Pois haverá então outro Natal que não este, o de hoje, o de sempre? Será possível, por acaso, que a História rebobine dois mil e poucos anos e que Jesus venha a desnascer? Porventura a estrela daquele dia deixará de brilhar bussolamente? O presépio poderá desfazer-se? Os Reis Magos desistirão de sua busca? Os anjos calarão o seu anúncio? Tudo o que foi deixará de ter sido? Todo o acontecido algum dia desacontecerá?...
Não: o Natal, como Natal que é, como presente que foi, como essência que tem; o Natal, como fato histórico; o Natal, como fato religioso; o Natal, como nasceu e por quem nele nasceu – o Natal é eternamente si-mesmo, e não poderia nunca, em hipótese alguma, ser qualquer outra coisa que não uma redundância de felicidade. O Natal é inevitavelmente feliz; nós é que podemos ser infelizes nele. Se há pessoas que não vêem e não verão o Natal com olhos felizes, a culpa é nossa. Se há pessoas que não suportam esta época por causa da saudade de quem amaram, a culpa é nossa que as deixamos solitárias, e que lhes permitimos pensar que só uma vez na vida tiveram o direito de ser amadas. Se há pessoas infelizes pela doença, a culpa é nossa – nem sempre da doença, é claro, mas sempre da infelicidade; afinal, não demos a elas motivos para acreditarem que em algum lugar há remédio, apoio, compreensão, compensação. Se há crianças que não crêem mais nem nos pedidos a Papai Noel, a culpa é nossa – demais! Se há pessoas sem uma ceia decente (ou perto disso que seja), a culpa é nossíssima! Nossa – não apenas (mas também) como indivíduos: nossa como grupo, como história, como cultura torta, como mundo torto, como um tudo torto que nasceu e cresceu torto o suficiente para jogar no que é perfeito a fatura de nossa imperfeição. E assim arrematamos nosso escandaloso marasmo, nossa indiferente condescendência, lançando nas mensagens a frase bonita e pleonástica: feliz Natal!
Não desejemos feliz Natal para alguém. Desejemos, façamos! alguém feliz no Natal. De preferência muitos alguéns, de preferência em todos os Natais. Não embrulhemos nossos melhores presentes, mas nos transformemos neles. Vivamos o que hoje dizemos. Sejamos o que hoje celebramos. Um bom você para este Natal!

21 de dez. de 2008

Nada se perde, tudo se transforma

Imagine ter que bancar o cineasta e refilmar, em apenas algumas horas e com sérias restrições orçamentárias, clássicos do cinema como Os Caça-Fantasmas, Robocop, Conduzindo Miss Daisy e 2001: uma odisséia no espaço. Tudo isso para não ver a sua querida videolocadora fechar as portas. Pois é. Essa é a missão (quase) impossível de Jerry (Jack Black) e Mike (Mos Def) no mais novo filme de Michel Gondry, Rebobine, por favor (no original, Be kind, rewind).

Apesar das dificuldades e trapalhadas, os dois fazem dinheiro com a brincadeira, tornam-se astros na vizinhança e ainda chamam a atenção dos grandes estúdios, que os acusam de pirataria. Mas sejamos gentis e rebobinemos um pouquinho o texto, para que o leitor entenda a estória – que começa quando o paranóico Jerry decide sabotar a usina elétrica da cidade por achar que ela está derretendo seu cérebro. O plano dá errado e ele é magnetizado. Assustado, vai procurar ajuda na decadente lojinha onde seu melhor amigo (Mike) trabalha e acaba destruindo acidentalmente todos os filmes disponíveis.

Para não perder os poucos clientes, a dupla resolve então suecar o acervo da locadora, ou seja, refazer cada filme a custo zero e da maneira mais tosca possível. E é aí que Gondry mais acerta. É divertidíssimo acompanhar a refilmagem – ou seria a recriação? – de cenas que ficaram na lembrança de todo cinéfilo. Os truques utilizados para fazer o fantasma aparecer/desaparecer, o homem flutuar na gravidade zero, o King Kong agarrar a mocinha indefesa – todos porcos e mágicos ao mesmo tempo. E o que dizer da pizza que se transforma em poça de sangue? Um tiro mais que certeiro.

Infelizmente, no entanto, Rebobine, por favor não é a obra-prima que eu gostaria que fosse. O roteiro apresenta os personagens meio atropeladamente, as situações iniciais ficam um tantinho atabalhoadas e o desenlace – embora bonito e emocionante – não desenlaça muita coisa. Resta a sensação de que o todo poderia ser melhor, mais redondo, de que o argumento inicial deveria ser mais burilado. De qualquer modo, vale o ingresso, vale a pipoca. Vale a singela homenagem ao cinema.

15 de dez. de 2008

Something to remember

Já era madrugada de segunda-feira quando cheguei em casa. Tirei a camisa e caí na cama extasiado, feliz da vida. Depois do metrô cheio, dos ambulantes em fúria, das filas quilométricas, da chuva interminável, do cheeseburger a oito reais. No meio disso tudo, ainda perdi meu celular veinho, veinho, sem câmera nem pixels. Bobagem. Porque o que pode parecer sacrifício foi nada perto daquele palco maior que o Maraca.
O tic-tac, tic-tac, tic-tac nos telões era meu coração batendo. Fim da contagem regressiva, surge a Rainha do Pop em seu trono, com pompa e espetáculo – Madonna abre as portas de sua fantástica fábrica de doces, a candy shop mais estaile do planeta, de fazer Willy Wonka morrer de inveja. De repente, um Auburn Speedster 851 risca o palco, ao lado de dançarinos tão sincronizados quanto oompa-loompas. Cores, luzes, som, a batida, o ritmo, beat goes on, and on, and on. O público – into the groove. O coração acelera, heartbeat, heartbeat, heartbeat, haja fôlego.
Mas não vou morrer. Die another day. Aparecem uma moçoila com vestido longo e rosa, outra de dominatrix, e mais uma, de noiva. Madonna não é nenhuma delas – é todas. E a cinqüentona tasca um beijaço na garota de branco. Na boca. Safada. Enquanto isso, Mr. DJ põe fogo na pista e prova que music makes the people come together.
A chuva continua, mas fuck the rain, fuck o escorregão, fuck o chão molhado. O Maraca é lindo e la isla, bonita – que Madonna canta rodeada de ciganos festeiros e violinos mais que animados. Palmas, palmas, palmas... até um silêncio reverente, para que a diva se arrisque sozinha em "You must love me", sem playbacks e outras bugigangas eletrônicas. You must love me, you must love me... We do!
E a amamos ainda mais quando ela volta à clássica "Like a prayer". O momento do show. Todos os 75 mil súditos cantam juntos. Pulando, vibrando, suando muito. Orgasmo no maior do mundo. Mas Madonna não tem pena da gente e nos lança outro ray of light. No alvo. O Maraca vira uma nave espacial. Mas time goes by so fast, time goes by so fast... Está terminando. "Give it 2 me" é a última explosão de energia. Game over.

8 de dez. de 2008

O time da virada

Quando os vascaínos levantamos a voz contra o racismo e fomos discriminados pelos "grandes" clubes do Rio de Janeiro, não cedemos à pressão de eliminar de nossa equipe negros, mulatos e operários – resistimos, vencemos e fomos campeões logo em nossa estréia na primeira divisão.

Quando inventaram que não podíamos jogar com os ricos porque não tínhamos um estádio, nos unimos e, em tempo recorde, sem um centavo sequer do governo, erguemos o maior estádio da América Latina na época – a Colina Histórica, São Januário.

Quando fomos para o vestiário do Palestra Itália perdendo por 3 a 0, para o Palmeiras, a final da Copa Mercosul, no ano 2000, todos diziam que seríamos vice-campeões outra vez – e então voltamos ao gramado e, em 45 minutos, protagonizamos a maior e mais espetacular vitória da história do futebol, aquele inesquecível e inacreditável 4 a 3.

Quando, em dezembro de 2008, fomos rebaixados para a Série B do Campeonato Brasileiro, cantamos e choramos de coração para todo o Brasil ver e ouvir. O árbitro apitou o fim da partida contra o Vitória (2 a 0 para eles) e, em vez de vaias ou xingamentos, entoamos nosso hino bem alto, numa demonstração de força e paixão jamais vistas. A virada começou ali.

4 de dez. de 2008

Simplesmente amor

Romance é sempre (sem maldades, por favor) uma coisa dentro da outra. O teatro dentro do cinema, a literatura dentro do teatro, o teatro dentro da televisão, a literatura dentro da televisão, a literatura dentro do cinema, a televisão dentro do cinema, o cinema dentro da televisão (e tudo isso vida adentro). O amor lido, o amor sentido, o amor vivido, o amor atuado, o amor fingido. O ator na vida que vive um ator que finge ser um não-ator que atua. História dentro da estória, camada sobre camada, um corpo sobre o outro, uma mídia sobre a outra. E nós, e todos os nossos outros nomes, todas as nossas outras emprestadas vidas (Pedro, Tristão, Julieta, Cyrano, Ana, Isolda, Romeu, Roxane), lá – inteiros.
Romance é filme inteiro, que nos supre redondo: inteligência e sensação. Tenho a tendência de me apaixonar por obras que eu possa, literalmente, saborear. Aquelas saliváveis, mascáveis, que demoram e derretem na boca à Guimarães Rosa ou Machado. Pois eu saí da sessão de Romance com gosto de petit gâteau na boca – uma plenitude de recheio doce, cremoso e quente. Aliás, minha história de amor com os roteiros de Jorge Furtado vem de tempos imemoriais: eu-menina, na escola, assistindo a Ilha das Flores. Desde então, estivemos sempre juntos. Já que o terceiro vértice sempre foram as regionalices fofíssimas de Guel Arraes, Romance só podia acabar em happy-end. Amor recíproco (porque o artista só pode amar a quem brinda com filmes assim) e feliz. Juntos, Jorge e Guel transformam midasmente qualquer matéria-prima em canaã onde corre leite e mel. Romance, tanto ou quanto (ou mais que) os outros rebentos da dupla, é filme úmido, farto e fértil como o Cântico dos cânticos. E cíclico, sempre cíclico – marca registrada de Jorge, da vida e das máquinas bem azeitadas. Tudo clockworking, sem uma peça ou fala fora de tempo e de lugar. Preciso e generoso.
Como de costume, Guel trabalha com poucos e excelentes. Wagner Moura é um dos raros que geram mocinhos tão soberbos quanto vilões. Letícia Sabatella brilha com seus olhos de gueixa-kabuki-máscara, olhos de taça de vinho prestes a transbordar. Vladimir Brichta, cada vez melhor, se desdobra como fingidor que finge tão completamente. Andréa está, entre Marilda e Radical Chic, totalmente Beltrão. José Wilker – lacônico – e Marco Nanini – exasperado – abocanham cada uma de suas poucas cenas. Tudo e todos descendo skolmente; tudo era uma vez. É filme que se quisera mais infinito do que o enquanto-dura, filme que (es)corre e não se sente. Enquanto dura, porém, nós e todos os nossos outros nós, as nossas outras emprestadas vidas (Guel, Wagner, Letícia, Jorge, Vladimir, Andréa), somos felizes para sempre.