30 de abr. de 2010

Segredos de liquidificador

Como já disse o Fábio, O segredo dos seus olhos foi o filme que mais vezes nós não vimos. Foram cinco tentativas até conseguirmos cumprir a missão. Na primeira, faltou luz no cinema e o dinheiro foi devolvido; na segunda, a falha de refrigeração da sala (em pleno Saara carioca) fez com que desistíssemos de pegar a sessão. Na terceira e na quarta, pepinos de última hora no serviço riscaram o cinema da agenda. Eu já estava começando a achar que teimar nesse objetivo era desafiar uma impossibilidade cósmica – mas felizmente, na quinta tentativa, os céus se abriram e nós cumprimos nosso trabalho de Hércules. Valeu a insistência. El secreto de sus ojos (no sonoro título original), Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010, é um filmaço – um peliculón, como diriam seus conterrâneos argentinos. Quem já assistiu aos adoráveis O filho da noiva e O mesmo amor, a mesma chuva sabe, de antemão, que a atuação de Ricardo Darín e a direção de Juan José Campanella fazem uma tabelinha para Pelé nenhum botar defeito. É pôr na jogada a habilidade magistral de Guillermo Francella e Soledad Villamil (nos respectivos papéis de amigo e amada do protagonista) e correr pro abraço.
Nos olhos dos personagens de Soledad (Irene Menéndez Hastings) e Darín (Benjamín Esposito) reside boa parte do “segredo” do título: o amor presente, nascente, crescente, visualmente dialogado mas nunca verbalizado (a não ser tendo o papel como intermediário). Além de no relacionamento mudo do casal principal, o “segredo” mora nos olhos de Isidoro Gómez, considerado culpado pelo crime que movimenta a trama – e mora duas vezes: no olhar pidão que ele dirige à vítima, Liliana, e no olhar devorador que pousa sobre o decote de Irene. O “segredo” mora também nos olhos de Ricardo Morales, marido da jovem assassinada – olhos que caçam o suspeito implacavelmente, mas que são, no dizer de Benjamín, “olhos de puro amor” em tudo que se refere a Liliana. Interessante notar que os olhares de Benjamín, investigador do assassinato, “rimam” e se misturam com os dos personagens que deste participam: a câmera fotográfica o flagra tão encantado por Irene quanto Gómez por Liliana, e não há um só momento em que ele não imite Morales nos “olhos de puro amor” dirigidos à amada.
Para quem se animou ao ler “assassinato”, um porém. Embora seja a espinha dorsal do enredo, o crime não envereda por investigações mirabolantes e se presta, antes, a servir de base para análises psicológicas, pretexto para críticas políticas e – principalmente – espelho de sentimentos e vivências do protagonista. Mais pessoal do que factual, El secreto é história de espírito machadiano, em que as impressões e memórias são filtradas pelos olhos (eles aí de novo!) alheios, tal qual em Dom Casmurro ou no famoso conto “Missa do Galo”. São segredos de liquidificador, como diria Cazuza – lembranças, simpatias, opiniões pessoais batidas no mesmo suco com os fatos e as informações objetivas. Bebe-se relatividade. No decorrer de toda a trama, há pequeninas pistas de que o que estamos vendo pode não ser 100% fiel aos acontecimentos, ao mesmo tempo que não há provas de que não seja. Isso é muito bem representado na metáfora da tecla que falta na máquina de escrever de Benjamín: falta-nos também, por vezes, esse elemento que poderia “fechar” cada frase do texto, esse elo perdido que nos levaria à terra de todas as certezas. Entretanto, como prova Benjamín ao fim da trama, é perfeitamente possível dispensarmos essa “tecla” e completarmos as lacunas por nós mesmos. Coisas de pós-modernidade, coisas de Machado. Não é uma narrativa “cheia de nadas” – como a vida que Morales deseja para quem o afastou de seu amor –, é uma história repleta de tudos: os muitos silêncios falam eloquentemente, de maneira doce ou perversa. Uma história sem únicas respostas, na qual – diria Guimarães Rosa – mais se aprende ao fazer outras maiores perguntas.

24 de abr. de 2010

Libertos e agiotas

A chuva que torturou Rio de Janeiro e Niterói já foi há algumas semanas, e as cidades – que jeito? – seguem adiante. O morro do Bumba evaporou dos noticiários. Políticos já estocaram no freezer as urgências que desaparecem em dias de sol, e só voltarão a existir na “surpresa” da próxima enchente. Brasileiros que somos, varremos a lama (literal e figurada), suspiramos e prosseguimos, com o para-brisa limpo o suficiente para andarmos mais alguns metros. Mas a chuva continua por aí – chovendo metáforas e consequências.
Meu caso, por exemplo. Naquela terça-feira de manhã, cheguei ao trabalho com a água pelos joelhos. Por que não fiquei em casa? Porque, simplesmente, não sabia do apocalipse. Com tevê e rádio desligados, confiei no que via pela janela: uma chuva aparentemente normal, como tantas outras. Do outro lado do metrô, ela não era como tantas outras. E aí já era tarde. Por pura desinformação, fui a única professora a conseguir chegar à escola, além da própria diretora.
Fiquei, depois, matutando a situação. Sei bem que não foi exclusivamente por falta de notícias que apareci por lá naquele dia. Muitíssimo menos por amor ao serviço ou preocupação com a diretora, com os alunos, com quem quer que seja. Apareci na escola por total incapacidade de faltar – exatamente como quando era eu a aluna e, mesmo sem estar a fim de assistir às aulas, não queria ter mais trabalho após a falta, nem queria precisar “catar” algum caderno com a matéria completa. Apareci na escola pelo mesmo motivo de sempre: por mim. Já que não tinha ideia completa do caos, queria mostrar que, ainda numa situação tão adversa, eu seria capaz de tudo para estar presente. Eu seria a funcionária mais comprometida possível. E para que mostrar isso? Elementar: para ter uma espécie de “bônus” a ser usado quando eu realmente precisasse me ausentar. O lado mais egoísta da responsabilidade.
Não é raro agirmos assim: ficarmos obcecados em ser sempre credores e nunca devedores; construirmos uma piscina de bônus inesgotáveis e nadar neles todos os dias, como o Tio Patinhas em suas riquezas – sem jamais gastá-los. Sermos, enfim, agiotas familiares, profissionais, emocionais, sentimentais: emprestadores de boas ações, mas sob altos juros. Nem sempre esse tipo de “agiota”, porém, quer que a dívida seja paga em novos favores; basta-lhe, às vezes, a eterna culpa e gratidão dos beneficiados, espécie de algema invisível. O maior senão é que o “agiota”, acostumado a converter relações em transações, nunca estará preparado para elogios, auxílios ou afetos gratuitos, uma vez que não poderá merecer o que não segue a lógica do merecimento. Nunca poderá pagar o valor do que não tem preço. A fortuna de um agiota emocional é feita apenas de promissórias; se receber, em gratuidade, muito mais do que é capaz de oferecer, seu coração acaba entrando em choque e abrindo falência.
O oposto dos agiotas emocionais são os libertos – aqueles que estão realmente livres de culpas e conseguem, portanto, receber e doar com a mesma naturalidade e alegria. Ainda usando a situação das chuvas, temos exemplos de libertos naquelas pessoas que não hesitam em largar o trabalho (ou os filhos, ou a faxina, ou o controle remoto) no momento em que percebem que alguém tem de ajudar a separar as doações que chegam para as vítimas das enchentes. Libertos são aqueles que perguntam “por que não eu?” e descartam todas as desculpas que conseguem criar como resposta. Libertos têm exata noção de seu próprio valor: exatamente o mesmo que o de todos os outros. Liberta é algo que eu serei um dia – espero que breve –, quando já não me preocuparei em fazer bonito e preferirei fazer o necessário, o urgente, o imperativo. Porque ficar cuidando só de sua própria vida é coisa de quem não tem mais o que fazer.

17 de abr. de 2010

Vou-me embora pra Helgoland

Lá sou amigo do rei e, nas horas de folga, amante da rainha. Lá tenho a cama que eu quero, no quarto que o Marcelo Rosenbaum decorou. Até sou feliz aqui. Mas em Helgoland – que, para quem não sabe, é uma ilhota alemã situada no Mar do Norte – não há ex-BBBs falando de seus “projetos” no TV Fama, não há políticos falando de seus “planos” depois da chuva e do morro derramado, não há o José Roberto Wright falando da arbitragem do Campeonato Carioca. Na verdade, lá não há TV Fama, não há chuva nem morro derramado, muito menos Campeonato Carioca (o que, convenhamos, é melhor ainda).
Lá em Helgoland a existência é uma aventura à Indiana Jones, de tal modo vibrante e inconsequente que ouvimos a trilha sonora de John Williams a cada amanhecer. E como não farei ginástica, pois não vou precisar: lá a pizza e o sorvete não engordam, e o pior que pode haver é você ter um piriri, oh yeah! Também não andarei de bicicleta, porque não sei, não tenho que saber e ninguém tem raiva de quem não sabe. Aliás, não saber e não querer aprender isto, isso ou aquilo é coisa muito bem vista em Helgoland.
Lá na ilha tem tudo. É outra civilização. Tem até a Dona Benta contando estórias na beira da praia. E não tem a moça do Santander, do Itaú, do Bradesco, do Banco Mundial, do FMI, do FBI, da CIA, da C&A, da Nasa, aquela chata com voz de robô enferrujado que me liga cinco vezes por dia para me oferecer crédito consignado e, ao ouvir um “não, não estou interessado”, pergunta por que não estou interessado, por que vou estar deixando passar a chance de realizar os maiores sonhos da minha vida: “O senhor não sonha estar comprando um carro, uma casa, estar fazendo uma viagem?”. No gerúndio, não, minha filha.
É por essas e tantas outras que vou-me embora pra Helgoland. Lá, quando eu estiver mais feliz, mas feliz de não ter jeito, quando de noite me der vontade de dar uma festinha à fantasia – lá sou amigo do rei e, nas horas de folga, amante da rainha –, terei Sir Elton John cantando e tocando no piano vermelho que escolherei (as minhas canções favoritas) e os melhores amigos da vida inteira com seus celulares devidamente desligados. Vou-me embora pra Helgoland. E não volto mais. (Quer dizer, até volto, quando acordar...).

11 de abr. de 2010

Aquarela animada

Faz uma semana entrei numa livraria como quem não queria nada e dei de cara com um livrão de capa colorida e rostos bem familiares: Charlie Brown, Manda-Chuva, os Flintstones, os Jetsons, Tom & Jerry e outros tantos superamigos da minha nada velha infância. Saudade deles. Saudade que me fez garimpar um cantinho tranquilo da loja para folhear página por página do tal livro, o Animaq – almanaque dos desenhos animados, de Paulo Gustavo Pereira.
Quem um dia se divertiu com as travessuras do Pica-Pau, acompanhou Scooby e sua turma desmascarando “fantasmas” nada sobrenaturais ou já se imaginou pilotando o Mach 5 certamente vai adorar essa antologia, que reúne zilhares de desenhos e curiosidades do fantástico mundo da animação. Uma verdadeira corrida maluca, que começa nos anos 1930, com o charme da provocante Betty Boop, e vai até o melhor desenho de todos os tempos da última semana, que pode ser o Ben 10 ou qualquer outro animê legitimamente norte-americano.
Uma delícia reencontrar Eric, Hank, Diana, Sheila, Presto e Bobby (ainda) perdidos na Caverna do Dragão; o lalalalá dos Smurfs azucrinando Gargamel; Zé Colmeia e Catatau surrupiando cestas de piquenique em Jellystone; o (nada) bom e (muitíssimo) velho Mum-Rá evocando antigos espíritos do mal a transformar aquela forma decadente no ser de vida eterna... (Tudo isso enquanto o He-Man dançava um rock gravado por Tom Jobim, e a She-Ra namorava o Esqueleto no jardim...)
Tempos bons que invariavelmente voltam quando um sujeito ultrafeliz – como deve ser esse Paulo Gustavo – resolve embarcar numa aventura bem à moda Ducktales (uh-uh!) e desenterrar moedinhas que ficam mais valiosas com o passar dos anos, tesouros como o timing cômico da dupla Papa-Léguas e Coiote; a ironia de cada “que que há, velhinho?” do Pernalonga; e as altas viagens que os Muppet Babies faziam – sem sair do quarto – até que a Babá (só as pernas dela, é verdade) aparecesse e perguntasse “Is everything all right in here?”. Yes, Nanny!
E, se o leitor pensa que that’s all, folks!, está ligeirinhamente enganado. Pois esse Animaq é um almanacão de mais de trezentas páginas, e nele cabem ainda todo o reino de Dar-Shan, a lendária Flor das Setes Cores e latinhas de um espinafre especialmente vitaminado, além de tantas outras estórias de um mundo que não cabe numa folha qualquer, que não se faz com apenas cinco ou seis retas – um mundo que, contrariando a famosa letra de Toquinho, jamais descolorirá.

3 de abr. de 2010

Feliz reaniversário

Todo mundo faz pelo menos dois aniversários por ano. Um deles é (óbvio) no dia em que completa x anos de nascimento. O outro é na Páscoa. Digo isso independentemente do tipo de crença religiosa que se tenha – ou que não se tenha. Qualquer vida neste mundo teve (ou terá) de se refazer depois de uma queda, de um erro, de uma fase, de uma decepção, de um obstáculo, de uma tristeza, de uma pequena morte. Qualquer vida neste mundo, por conseguinte, merece e precisa celebrar sua revida, seu novo capítulo, sua cura, seu aperfeiçoamento, ou mesmo a simples esperança do aperfeiçoamento e da cura (porque decidir virar a página é o primeiro passo para dar continuidade à história). Todo mundo tem sua Páscoa – essa feliz edição revista, ampliada e melhorada de si mesmo.
O nome Páscoa, como sabemos, tem sua origem e essência na palavra passagem. Para os judeus, representa especialmente a passagem da escravidão (no Egito) para a liberdade (de buscar uma terra totalmente sua). Para os povos anteriores aos judeus, a passagem de um tempo de natureza estéril (o inverno) para o viço e a abundância de cores, calor e promessas de frutos (a primavera). Para os católicos, a passagem da morte de Jesus Cristo (numa cruz) para sua ressurreição (poucos dias após). Em todos esses casos, tão absurdamente forte é a pulsão de vida que as muralhas – embora também absurdamente fortes – não podem deixar de se render diante da intensidade estarrecedora. A Páscoa dos judeus dobrou os joelhos e o orgulho de um faraó cabeça-dura, que, como todos os faraós, se considerava um deus na terra. Dividiu ao meio o Mar Vermelho, a ponto de ele se deixar atravessar a pé enxuto. Enfrentou quarenta anos de pedreira e caminhada no deserto. A Páscoa dos povos antigos se sobrepunha à nevasca que parecia matar qualquer expectativa de se continuar extraindo o sustento da terra – muda, desolada por três meses. A Páscoa de Jesus fez um corpo mudo, sepultado há três dias, rolar a pedra do túmulo e ressurgir mais pleno. Vida (com vezão): 1; Morte (com emezão): 0 – a ultimate fighting de todos os tempos.
Esse deve ser sempre o placar. Através dos anos, séculos e milênios, esse é o abençoado clichê que deve continuar se repetindo, over and over. Também para você. Seja qual for o seu faraó cabeça-dura (quem sabe não é você mesmo?), que ele ganhe ouvidos de escutar e mãos de libertar. Seja qual for o seu Mar Vermelho, que ele se abra sob os seus pés e se curve à sua imensa vontade de seguir caminho. Seja qual for o seu deserto – arenoso ou gelado –, que você saiba buscar o frio ou o quente que lhe faltam para que aquele caminho floresça. Seja qual for o seu túmulo neste instante, que não haja pedra no mundo capaz de sepultar seus sonhos por muito tempo. Seja qual for sua pequena e provisória morte, que ela seja diariamente substituída por uma vida teimosa, grande e definitiva. Que todo “desaniversário” (como se diz no País das Maravilhas) seja na verdade um “reaniversário” – mais uma chance de dizer sim ao que pode ser e ao que virá; mais uma oportunidade de comemorar a vitória sobre o que já foi. Feliz Páscoa! felizes páscoas, felizes passagens; que essa força esteja com você – sempre.