6 de set. de 2009

O grande ditador

Todo mundo já ouviu aquela história: atire-se um sapo numa panela de água fervente e ele salta dali, desesperado; deixe-se o bichinho mergulhado em água prazerosamente morna, porém, e entorpecido ele se permite cozinhar aos poucos, até a morte. Metáfora velha e boa. Se confrontados subitamente com a hipótese de repetição de uma ditadura nazista, reagimos com horror ofendido, como se nos tivessem xingado um parente. É – com a maior justiça do mundo – um tabu social, bicho-papão histórico. As lembranças, fotos, imagens tristíssimas queimam e repugnam de imediato. Mas quem poderia realmente dizer, com a primeira pedra já a postos na mão, qual seria sua (re)ação ao ser cozinhado, em banho-maria, num contexto de carência de ídolos e ideais? no meio de uma juventude necessitada de entusiasmo? num momento de crise nacional e mundial? e em especial, para jogar a última cebolinha no caldeirão, numa fase de surgimento de promessas inflamadas, líderes sedutores? Pouquinhos (sejamos francos) passariam no teste de imersão total. Foi o que puderam constatar, por inexperiência própria, os alunos de Rainer Wenger, protagonista de A onda – um dos mais educativos filmes já feitos sobre o nazismo, embora não exiba uma suástica sequer e se passe nos dias atuais.
Não está ali, no projeto escolar conduzido por Wenger, o bigode raivoso de Hitler cuspindo perdigotos – e sim a simpatia de um professor garotão, camarada dos alunos. Não está ali aquele símbolo que aprendemos historicamente a odiar – e sim um outro, grafitado e moderno. Não estão ali os uniformes enjoadamente militares da juventude hitlerista – e sim prosaicas blusas brancas e calças jeans. Não estão ali os detestáveis campos de concentração – e sim o alijamento de todos os que não usam as tais blusas. Não está ali a reprodução literal do movimento nazista, em cada um de seus entretantos; mas está, sem dúvida, a reprodução de sua alma, em (quase) todos os seus primeiramentes e finalmentes. Para fazer o mesmo prato indigesto, não são necessários ingredientes da mesma marca: similares, desde que ruins, desandam igualmente a receita. É juntar a falta de perspectivas de um, o vazio familiar de outro, o tédio vivendi de um terceiro, o desajuste social de um quarto, as tendências violentas de um quinto, a natureza extremista de um sexto, o ego inflado de um sétimo, a raiva deste, o servilismo daquele – e essa massa, podre de origem, acaba de azedar até o que era inicialmente puro e nobre (em alguém), como a saudade das ideologias, a nostalgia da união, o respeito à disciplina, as boas intenções. Não é de boas intenções que o inferno está cheio: é do fato de se achar que os maus atos também são capazes de protegê-las.
A onda vai na ferida. Mostra, com eficácia e simplicidade, que não é possível estarmos verdadeiramente vacinados contra a ditadura enquanto não reconhecermos o que, no fundo, achamos que ela tem de bom – exatamente para poder olhá-la nos olhos e dizer que isso não basta. Não é a água fervente do nazismo, ou de qualquer outro regime nojento, que nos ameaça. O que nos ameaça não é o ditador externo que seduz, controla, proíbe. O que nos ameaça é o nosso grande (imenso!) ditador interno, pronto para se deixar lentamente seduzir, controlar, proibir. Aquele tiraninho que mora, secreto, em cada um dos nossos desejos de imitar o Capitão Nascimento (ou ter alguém que o imite por nós), de explodir o país para começar de novo, de deletar pessoas em vez de corrigir atitudes, de matar opiniões em vez de sugerir consensos. Este fulano – nosso maior inimigo – não é o que nos agride, mas o que nos convence de que temos o direito de agredir e, eventualmente, o dever de ser agredidos. Os piores ditadores do planeta não são aqueles saudados com a mão estendida. São aqueles que os escutam e (ainda que lá no fundozinho) ficam com vontade de apertar-lhes a mão.

26 comentários:

ROdrigo disse...

Putz esses dias eu vi uma matéria sobre esse filme na tv e achei muito louco to tri afim de ver
depois de assisitr pode ter certeza q volto para dizer o q eu achei

Gregory Vancher disse...

Gostei muito do texto.
Bela mistura entre crítica cinematográfica e social.
Quanto ao tema, eu costumo achar que a essência das coisas é ambígua e quem decide entre o bem eo mal é quem pratica o ato. Esse ditador interno, muitas vezes é necessário. Não digo que devamos agredir alguém ou negligenciarmos os direitos do outro. Digo apenas que é ele o motivador de defendermos nossos ideais.
É claro que essa voz nos é nociva algumas vezes, mas a dosagem, o controle da mesma cabe a cada indivíduo decidir.

Marcelo A. disse...

Li no O Globo uma matéria sobre o filme e uma entrevista com o professor verdadeiro. Fiquei muito interessado em assisti-lo. É o tipo de filme que faz a gente pensar...

Valeu pela indicação!

thaiana disse...

ainda não tinha ouvido falar desse filme mais agora estou louca para assistir...
nunca tinha ouvido aquela metafora do sapo mais gostei...
e o texto ta muito bom...
beijim

Marcus disse...

O filme deve mostrar tudo oque a gente sabe mais num quer saber. ou seja só abre nossos olhos!

Cruela Cruel Veneno da Silva disse...

esse filme tinha que ser obrigatório...

Habib Sarquis disse...

Quero ver esse filme. De um ditador todo mundo tem um pouco.

Blog: Cultura Dinâmica - www.culturadinamica.wordpress.com

Inez disse...

Vi uma entrevista do professor, ele é um cara sensacional.
Adorei seu texto.

Unknown disse...

Li uma matéria que saiu no jornal O Globo, o que me levou a uma vontade enorme de assistir ao filme. Só ainda não tive tempo.

Gostei do que escreveu também.


http://maynabuco.blogspot.com/

Guttwein disse...

Bem verdade que esse é uma regravação... o "The Wave" original eu já assiti e faz um booooom tempo. Esse novo ainda não, mas ao que tudo indica, uma coisinha ou outra deve ter mudado.
Acho uma historia interessantissima! E recomendo a todos!
Não dou uma opinião mais centrada, levando-se em consideração que posso arrumar desafetos por causa disso... não são todos infelizmente, que estão preparados para ler, e por consequencia, ficar sabendo, de certas coisas...

Fernando Gomes disse...

Fiquei a fim de ver o filme. Gostei das descrições. Só acho que faltou mais informações técnicas da produção, mas isso não importa tanto, seu texto tá show.

http://isaidtv.blogspot.com/

Geriel Barros disse...

Realmente o texto está muito bom,agora estou curioso para assistir o filme . obrigado vlw.

Macaco Pipi disse...

ISSO É SER BABACA!

Wander Veroni Maia disse...

Oi, Fernanda!

Não assiti ainda esse filme, mas só pela sua crítica fiquei com vontade de ver para tirar as minhas próprias conclusões.

Beijos,

http://cafecomnoticias.blogspot.com

Unknown disse...

O filme é muito bom mesmo bem real, ele retrata muito bem essa situação. É bem interessante...

Unknown disse...

Muito bom a assunto muito importante, esses dias estava lendo um livro de George orwell 1984, que é uma distopia a respeito de um regime totalitário, é uma fixão mas incrí9velmente me dei conta como algumas coisas se pareciam coma minha realidade nesse país!
tém um frase deo Milor Fernandes mais ou menos assim:" Nos olhos do revolucionário de hoje, se Vê o despota de amanhã"
parabéns exelnte matéria

Wagner Bormann disse...

vi uma reportagem sobre esse filme...*
viquei curoso p assistir...*

Inez disse...

Não tenho vontade de assistir esse filme pois o nazismo foi a maior mancha n história da humanidade, nele foram usados todos os meios para convencimento do povo alemão.

Jeniffer Yara disse...

Belo post! Belo blog! Rs

Bjs

Unknown disse...

Esse ditado popular do sapo você consegue interpretar de várias formas, eu como sou um crítico político tenho a minha interpretação.
A ditadura ainda está presente hoje no meio do povo brasileiro, muita gente nega isso porque esta como um sapo na panela de água fria, se fosse como nos tempos passados que era como um sapo na panela de água fervente certamente a situação seria perceptivel, mas o comodismo deixa a pessoa anestesiada, e não consegue enxergar nada ao seu redor ao não ser apenas concordar com opiniões dos outros. Eu ainda não vi esse filme, pode ser que eu esteja atrasado, mas vou procurar me informar melhor a respeito desse filme.

Viviane Righi disse...

Sua postagem foi nota 10, Fernanda, pois o tema do filme me surpreendeu.

Dá pra parar e refletir. E vontade de assistir ao filme não faltou...

Parabéns! E até breve...

CAMILA de Araujo disse...

Seu texto me deu vontade de ver.
Muito interessante!

www.teoria-do-playmobil.blogspot.com

camila disse...

Não tinha ouvido falar do filme, bela crítica.

Quanto à sua teoria dos pequenos ditadoresinhos internos, eu não concordo, falando de mim, é claro. Mas não sou exemplo seguido, nem seguidora, sou apenas eu, às vezes autenticamente original, as vezes estanhamente excluída. Então, você deve ter razão falando da maioria!


Abaixo moralistas!

Anônimo disse...

Esse ditado do sapo eu conheço!
Não tinha visto nenhuma notícia a esse respeito, vc me deixou curioso!

Fábio Flora disse...

De fato, vivendo no mundo em que vivemos, especialmente vivendo na cidade em que vivemos (o Rio de Janeiro), é difícil estar verdadeiramente vacinado contra a ditadura. Como gostaríamos de ter um Capitão Nascimento nos defendendo desses "moleques" que nos assaltam, nos sequestram e nos matam todos os dias, que nos fazem sentir medo de sair de casa, de andar na rua. Como bem disse uma vez o Diogo Mainardi, o Capitão Nascimento – se existisse e nos salvasse dos criminosos – mereceria o Prêmio Nobel da Paz.

Karina Kate disse...

Mandou bem no texto. Falar em ditadura agora é como nós aboirdássemos tambem alguns conceitos que são levados hoje pela mídia e pela elite brasileira que omite muitas coisas que nós Brasileiros não sabemos. Mesmo sem ditadura, muitas coisas estão debaixo do tapete e nós não pdoemos deixar isso acontecer aos poucos... o que seria uma ditadura implícita certo?!