14 de mai. de 2010

Lentes de contato

Quando eu era pequena (quer dizer: menor), adorava assistir àqueles programinhas da TVE que reuniam animações do mundo inteiro, como Glub glub, Lanterna mágica e quetais. Outro dia me lembrei de um desses desenhos perdidos no tempo: a série francesa A princesa insensível, feita de miniepisódios que não chegavam a cinco minutos. Uma pérola. Praticamente sem falas, mostrava as tentativas que os diversos pretendentes da princesa faziam para conseguir que ela esboçasse alguma reação (e, por tabela, se casasse com o herói). Em cada episódio, um pobre rapaz se exibia diante da moça cheio de esperança, explorando sua maior habilidade de forma espetaculosa. Era um tal de malabarista malabaristando, cozinheiro cozinhando, príncipe montado em unicórnio – domando cão de três cabeças –, jardineiro brotando flores e folhagens mágicas de cada canto do palácio... E a princesinha ali, sentada no trono com cara de parede de consultório, sem mover um músculo. Todos iam embora decepcionados, ninguém entendia por que a megerinha demonstrava tanta indiferença diante da beleza. Até que, no último capítulo, o pretendente vencedor teve um único gesto: chegou perto da princesa e tascou-lhe... não, não um beijo! e sim um par de óculos no rosto. Pela primeira vez os olhos miudinhos da menina se abriram, o sorriso acompanhou e ela começou a aplaudir entusiasmada o show que faziam no castelo. Injustamente, todos no reino consideravam insensibilidade o que era apenas uma miopia escandalosa.
A “lição” para qualquer criança era clara: não se deve julgar pelas aparências, blablablá. Verdade. Mas a adulta de hoje, com as (sempre) novas lentes que a vida vai nos depositando no rosto, vê que a moral da história não parava por aí. Uma observação adultamente apropriada é a de que a princesinha só conseguiu ser si-mesma ao se unir a alguém muito mais interessado em fazê-la ver do que em ser visto. Não sermos vistos é nossa constante frustração, mas não costumamos nos dar ao trabalho de perceber que nem todos têm as pupilas reguladas para a “frequência” em que operamos; nem todos enxergam no mesmo espectro que enxergamos; não é o hardware de qualquer um que roda o software que nós rodamos. Podemos, sim, colocar nossas lentes em contato, fazer conversões do nosso tipo de “arquivo” para o do outro, traduzir o nosso mundo para a linguagem do mundo alheio. Porém, antes de mais nada, devemos reconhecer – sem sofrer – que existe esse gap entre a nossa plataforma e todas as demais. Ignorar o abismo é mergulhar dentro dele. Teimar em caminhar no universo de outra pessoa usando os óculos errados é a melhor forma de dar com a cara no poste.
Seria falsa, pois, a velha máxima de que visões opostas se atraem? Não acho que sim, não acho que não. É verdade que sempre confiei muito mais no poder das semelhanças, mas não é difícil encontrar quem relate cinco ou seis casos de romances estranhos e bem-sucedidos, entre apaixonados de diferentes planetas: a zen-budista e o pastor luterano, a intelectual sedentária e o alpinista radical, a corintiana e o palmeirense, a macrobiótica e o dono de churrascaria. Ser ou não ser oposto – esta não é a questão. Há torcedores de times rivais que partilham a pipoca no sofá e há almas praticamente idênticas que se divorciam por causa da posição do rolo de papel higiênico. A única regra possível não é a de falar a mesma língua do parceiro, mas de se dispor a andar com um dicionário debaixo do braço – se for preciso, por toda a vida. A única bandeira branca não é a igualdade, e sim a disponibilidade para a diferença. Miopia social, todos têm; só alguns, entretanto, se lembram de corrigir o próprio grau antes de conseguir espiar o mundo alheio com olhos e coração suficientemente abertos.

12 comentários:

L.A disse...

adorei o blog, parabens

Amanda Salvador disse...

eu adorei seu blog. E adorooo glub glub! esses canais educativos são sensacionais.

Léo disse...

Estou sem palavras
Muito bom seu post

Jéssica Martins disse...

curti seu blog, parabéns e sucesso
abç

Angela disse...

"A única bandeira branca não é a igualdade, e sim a disponibilidade para a diferença."

Pura verdade... compartilho dessa opinião.
Mais difícil do que exigir igualdade, é conviver bem com as diferenças. Este sim é o grande desafio!

Adorei seus textos!

Anônimo disse...

Extrovertímido diz: legal

Tiago Castelo disse...

ARRAZOU! Pena que, pelo o que eu vejo, aí em cima não tem nenhum comentário que preste, talvez todos estejam só preparando a mim pra enxergar que eles todos precisam de suas lentes, e procurar enxergar melhor as coisas. Eu preciso de lentes e você também. Tô no youtube agora, pesquisando sobr a princisa, gostei da história - vim gostar de desenhos depois de crescido, talvez porque agora entendo quais têm conteúdo que REALMENTE me atraia - acabei de assistir O Jardineiro e, gente, fiquei com pena do coitado. rs

Parabéns pelo post, e obrigado pela informação da Princesinha.
Um Abraço.

Fabrício Bezerra disse...

eu nunca ouvi falar desse desenho,mas achei interessante o jeito que vc interpretou.acho que ao longo de toda a serie essa era a lição que o autor quis passar

Angélica Nunes disse...

Bhaaa.. eu ja ouvi essa história de muitas maneiras...
mas gostei masi do desfecho dessa do que a das outras versões...
Pois querendo ou não, as pessoas acabam dando seus "toques pessoais" á contos infantis...

Guilherme Bayara disse...

Nunca ouvi falar, mas parece ser bem legal

Jota disse...

parabéns. o blog tá muito massa!

Anônimo disse...

gostei muito do texto, alias li vários aki e vi que escreve muito bem...

http://welinfo.com.br/