30 de jun. de 2010

Lollipop Guild

Um daqueles anúncios de internet na página. O slogan “descubra um mundo que já é possível” e o provocativo “passe o mouse”. Tudo bem: passe. Clicar eu não clico. Sabe-se lá o que pode vir de um anúncio de internet. Mas dar uma esfregadinha com o mouse, como quem esfrega curioso a lâmpada mágica, vá lá. Passei o mouse. O anúncio se estendeu, fez aparecer um carrinho que caminhava pela estrada. E o complemento da propaganda: “blindagem a partir de R$ 18.950”. Nos pontos da estrada em que o carrinho deslizava mansamente, dentro de sua bolha de felicidade, tudo se coloria. O cinzento da cidade se açucarava. Postes, por exemplo, eram vistos como pirulitos de Natal – aqueles vermelhos e branquinhos que os americanos chamam de candy canes. What a wonderful world.
Blindagem, claro; esse é o “mundo possível”. Santa tolice minha, Batman, achar que a minúscula inscrição abaixo do logotipo da marca – the miracles of science – teria algo a ver com progresso científico, benefícios coletivos, melhor qualidade de vida para todos, essas bobagens. O negócio é prático. Não pode vencê-los? Isole-os. Isole-se. Blinde-se. Blind-se, cegue-se, escude-se. Pague menos de vinte mil e construa sua redoma de açúcar, seu paraíso portátil, seu éden para viagem. Um universo de balas que não sejam perdidas. Entre para a Liga do Pirulito, a Lollipop Guild, como cantavam os munchkins de O mágico de Oz. Não tem 18.950 contos dando molezinha na carteira? Boa sorte com os tiroteios, os atentados, os sequestros, a vida fora da bolha. A casita de palha ou madeira prestes a cair ao primeiro sopro do Lobo Mau.
Não estou irônica e polianamente sugerindo que não devamos nos blindar, ou que seja feio e careta ter medo. Os cariocas somos escaldados por natureza, apavorados de fábrica. Antes de sacar a chave de casa, dou uma espiada no entorno, em todas as direções da rosa dos ventos. Ando engalfinhada na bolsa, passo longe de qualquer bicicleta ou moto ou pivete que dê pinta – ou não dê pinta – de querer arrancá-la. Uso o caixa eletrônico com o sigilo de um Ethan Hunt em plena missão impossível. Sim, eu blindaria até o corpo se pudesse. No Rio de Janeiro, nunca se sabe. No Brasil, nunca se sabe. No planeta Terra, nunca se sabe. Eu sei, porém, que proteger-se é uma coisa; ter a petulância de chamar a proteção de “um mundo possível” é outra bem diferente.
Blindemo-nos, mas com uma condição: não pensemos que resolve. Não pensemos em nenhum “agora sim”. Pensar “agora sim” nos faz ter a sensação de que, seguros, podemos nos aposentar do mundo – aquele único mundo possível, ainda e sempre coletivo. Aquele que ainda não vem (que nunca virá) em porções individuais, de bolso. Blindagem não é passaporte para dimensão paralela, nem cidadania garantida em outro planeta. Dentro de seu carro, de seu condomínio, de seu abrigo nuclear, a Constituição permanece a mesma. O hino também. Os postes não viraram pirulitos, os pedestres não perderam a capacidade de sangrar, os vizinhos não se tornaram imunes à dengue, aids, gripe suína, fogo, música alta às 2h da madrugada. Nem você, aliás. A rua continua cheia de moradores. Os moradores de Alagoas continuam precisados de casas, roupas e alimentos. Sua mulher continua esperançosa de um minuto de atenção. Seu filho continua necessitado daquela boa e carinhosa bronca. Todos ainda o aguardam, todos ainda esperam você dar expediente, o escudo não substitui livro de ponto. Armadura não é alforria de mundo. Blinde-se, mas continue na ativa.
Continue passando resolutamente o mouse, mas sem clicar em anúncio de internet. Nunca se sabe.

13 comentários:

Paulo Tamburro disse...

OI FERNANDA, EXCELNETE SEU BLOG E PRINCIPAMENTE ESTE TEXTO,

REALMENTE "NUNCA SE SABE", EIS A CHAVE DO NEGÓCIO.

NÃO CONHECIA O SEU BLOG.

ACHEI REALMENTE, MUITO INTERESSANTE E TENHA A CERTEZA DE QUE VOLTAREI SEMPRE AQUI.

TAMBÉM, APROVEITO PARA CONVIDAR VOCÊ A CONHECER O MEU BLOG:

“HUMOR EM TEXTO”.

A CRÔNICA DESTA SEMANA É SOBRE UM TEMA QUE DESPERTA CONTROVÉRSIAS E MUITA SENSUALIDADE..

SE PUDER, CONFIRA E SE QUISER COMENTE, POIS LÁ O MAIS IMPORTANTE É O SEU COMENTÁRIO.

UM ABRAÇÃO CARIOCA!

Euzer Lopes disse...

Para você ver a ponto chegamos.
Esta tal blindagem na verdade nos faz prisioneiros de nossos medos, diante da nossa fraqueza quanto a uma situação que nos faz fracos.
Nossas casas têm grades. Nossas janelas, cadeados e cortinas escuras.
Nossa liberdade termina na ponta de uma arma, encostada em nossa pele.

Macaco Pipi disse...

BOM PRECAVER MESMO

igor disse...

uou !
adorei o texto,é bem isso mesmo,
"As grades do condomínio são pra trazer proteção,mas também trazem a dúvida..."
Meu blog tem uma dica,pra quem quer ganhar dinheiro na net,
http://igorviniciusneobux.blogspot.com/2010/06/como-funciona.html
abraço

kbritovb disse...

muito bom texto
principalmente pela parte de blindagem num vai impedir nada

Homem do Bolinho disse...

A tal propaganda por si só já é uma ironia, com o que você descrevou e o preço... Bom, na sociedade de hoje não há mais liberdade e só sobrevive quem pode pagar. Essa é a realidade, infelizmente.

Anônimo disse...

Excelente o post, nunca estamos totalmente protegidos.

Unknown disse...

Legal seu blog!!!

Joice Kelly disse...

e verdade!
e eu tava passando o mouse aqui o tempo todo pra ver o que acontecia! kkk

L.L.J. disse...

Muito massa seu post...
esse trecho então,putz:

"Armadura não é alforria de mundo. Blinde-se, mas continue na ativa."

E quer saber do que mais?
A armadura muitas vezes chama ainda mais atenção à quem "autodefende-se".

sumiu disse...

Faço minhas as palavras do Homem do Bolinho, concordo com o que ele disse!

Anônimo disse...

"Armadura não é alforria de mundo. Blinde-se, mas continue na ativa."

Ótimo texto. Se pudéssemos nos blindar de tudo e de todos... Utopia. O jeito é continuar vivendo e esperando que o medo não tome a razão.

Vc curte rock? disse...

Haja banho de sal grosso...

\o/