27 de mai. de 2010

Os incomodados que emudeçam

Outro dia, a cena de uma colega de trabalho esbravejando na bilheteria do metrô (porque “não havia troco disponível” para ela) trouxe à tona, mais uma vez, uma impressão antiga: não há espaço para os incomodados no Brasil. O país é continental, mas os incomodados não cabem nele. Pelo menos, não são bem-vindos. Se não me acredita, basta observar a reação daqueles que gravitam em torno dos incomodados, presenciando suas – quase sempre justas – indignações. Dois quintos da plateia suspiram chateadamente, olhando o relógio; dois quintos disfarçam o constrangimento trocando risinhos cúmplices com outros não-incomodados. Um quintinho, se tanto, ensaia algum apoio – mas raramente é forte o bastante para que o incomodado consiga, por clamor popular, a justiça que não consegue por ética, por cidadania ou (que piada!) por lei.
Um incomodado que demonstra seu incômodo é, em nossa terra, sinônimo de chato. Não admira. Somos filhos de uma história de violência e adulação. Nossa origem é metade pisoteada, metade pisoteante; somos tão descendentes dos que foram oprimidos – pelo chicote dos feitores, pelas armas dos jagunços, pelas botas dos bandeirantes, pela primazia dos nobres, pelas negociatas dos coronéis – quanto dos que bajulavam seus opressores em troca de um apadrinhamento de filho, de um título de barão ou de mais dois dias de sobrevivência. Nosso decantado (e às vezes odioso) “jeitinho” nasceu desse cruzamento da humilhação com o poder. É o jeito malandro de subsistência dos fracos, mas é simultaneamente um grito de indiferença: eu arranjei maneira de me virar, um braço em que me pendurar, não quero saber das consequências para os outros, que cada um se vire também. Quebrados pela História, aprendemos a ser lobos individualmente e cordeiros em grupo. Um incomodado reclamão é alguém que nos convoca a ser lobos em grupo, alguém que tenta nos tirar de nosso confortável anonimato malandro – e isso, definitivamente, não podemos permitir. Reclamar contra o patrão? Só na rádio-corredor, durante a pausa do cafezinho, e olhe lá.
Escandalizados, alguns jurarão que não, que o povo brasileiro é extremamente compassivo e solidário. Concordo. O brasileiro é extremamente compassivo e solidário quando se trata de solucionar problemas sem perturbar o sono dos governantes. É muito mais fácil fazer, recolher e separar doações para os desabrigados do morro do Bumba do que ficar, noite e dia, infernizando a vida dos políticos para que nunca mais haja desabrigados. É muito mais rápido se tornar um “Amigo da Escola” do que exigir mudanças que diminuam as discrepâncias da educação. Tornou-se muito mais acessível para nós, os pisoteados, lamber as feridas do que evitá-las; aceitamos levar as chibatadas no tronco em pleno dia, e só no escondidinho da noite experimentamos o auxílio dos que vêm limpar os machucados. Somos solidários sim, mas nos remendos. Solidários no vazamento e no curto-circuito, não na troca do encanamento e da fiação. Solidários nos fins, não nos princípios. Unidos mesmo – daquela união de base, que faz revoluções, que peita governos, que cobra providências, que é capaz de paralisar um país inteiro numa resistência organizada, seja esperneante ou muda – nós não somos, raramente fomos, Deus sabe se ainda seremos. Seremos, talvez, quando tacarmos no lixo nosso “jeitinho” Superbonder e remobiliarmos a casa com peças sem rachadura; quando jogarmos fora os epítetos de “cordial” e “pacífico” que algemam nosso povo a uma história de falso cor-de-rosa. Seremos quando nos assumirmos derrotados, em vez de brincar de apêndice do grupo dos vencedores. Quando engrossarmos a reclamação dos incomodados em pleno horário de expediente, em lugar de suspirarmos, atrás de nossos relógios e coleiras, pelo momento de eles calarem a boca.

12 comentários:

Fabio de Castro disse...

Excelente!
Tão bom, que fiquei mudo!

Danny Reis disse...

Isso que você falou eu concordo.. Um brasileiro não pode se incomodar com algo que já se torna um chato, ou até msm um escadalozo. E o que a gente vê muito perto dos encomodados, são pessoas suspirando pra não se tornarem mais alguns incomodados...
Legal seu post..
Bjoos

Nicole Delucca Linhares disse...

Nossa, que texto bacana! Realmente você tocou na ferida, bem no centro do problema do povo brasileiro. Às vezes eu fico assombrada quando viajo para fora e vejo como as pessoas se mobilizam de verdade, a conduta ética que elas tem no cotidiano, nas pequenas coisas... Aqui no Brasil realmente existe essa chaga histórica no temperamento do nosso povo. Eu sou uma pessoa indignada (muitas vezes efetivamente a chata), mas não estou nem ai! Que venham as pedras, mas o que é meu de direito, é meu e de mais ninguém!
Parabéns pelo blog! Façam-me uma visita também: http://lugaresromnticosquejfui.blogspot.com/
Abraços,
Nicole.

Érika dos Anjos disse...

Com o perdão da palavra, Do caralho esse texto! Desculpe o uso do mau vocabulário, mas não achei que excelente, ótimo ou variantes descrevessem bem o que senti lendo o post.

Do caralho serve para expressar a concordância quando fala dos incomodados, pois quase sempre sou taxada de 'barraqueira' por tentar, ao menos no sentido micro, fazer valer meus direitos; do caralho serve para expressar a raiva de saber que herdamos algo que não escolhemos, como essa submissão ao 'maiores', aos mais ricos e, principalmente, àqueles que sabem mandar; do caralho também serve para expressar sua vontade em conseguir colocar em palavras o que senti quando vi aquele amontado de gente olhando a tragédia no Morro do Bumba (estive lá trabalhando, sou jornalista), que por livre e espontânea vontade estavam ali, olhando o trabalho dos bombeiros, sentindo o cheiro de carne em decomposição e de lixo, apenas pelo prazer mórbido de dizer aos quatro cantos que viu o que aconteceu e que agora iria ajudar, conseguir alimentos e tal. O problema é que o agora já é tarde. O agora não pode impedir que aquelas tantas pessoas (e ainda acho que há corpos lá, pois havia muito mais casas do que foi divulgado) morressem. O agora só vai servir se batermos pé, se gritarmos para mostrar para os governantes que há outros morros do Bumba prestes a explodir, prestes a cair, e não só em Niterói, mas em todo o Rio, quiçá todo o Brasil. E quando isso será dito? Quando cair de novo, quando houverem mais mortes.
Lembro-me de uma frase que uma moradora do Morro do Céu, também em Niterói, falou quando a entrevistei: "Dona repórter, eles só vão lembrar de mim quando eu for uma lembrança". Essa doeu, mas foi do caralho!

Grande abraço e parabéns pelas palavras!

Érika dos Anjos
http://www.oquartoelemento.com.br

Thi disse...

Sempre disse isso... o brasileiro é muito passivo, mas nunca tinha notado o quanto as pessoas além de nunca se mexerem para fazer algo, acabam reprimindo quem faz!

Muito bom o texto!
Beijos!

Marcello Lopes disse...

Excelente.
Verdadeiro.

Nosso país foi colonizado com o que a Europa tinha de pior, ladrões e prostitutas.
Fomos transformados em colônia penal,e depois em estoque de suprimentos pra Portugal e outras nações, nossa liberdade foi comprada,negociada,não houve derramamento de sangue que talvez nos desse sentimentos mais patrióticos.
Aliás,não moramos em uma democracia, somos apenas fachada pq somos obrigados a votar, a nos alistar no exército..somos patriotas no futebol,no samba e nas coisas fúteis.
Que beleza seria ver uma gaviões da fiel utilizando toda a sua rebeldia para forçar os vereadores a votar algumas leis importantes nesse país.
E a Mancha Verde estacionada em frente à res de um senador acusado de desvio de obras??
Pena que isso não é real.

marcelovitor29 disse...

Vem cá, onde assino? Não tenho nada a completar, so concordar, gostaria que você desse uma passada em meu blog, o perfil é o mesmo do seu, reclamar daquilo que agente entende como errado, sem medo!
vou colocar o link do seu blog na minha lista de blog amigos, não quero perder suas atualizações de vista!

http://scraxonews.blogspot.com/

joão victor borges disse...

"Nossa origem é metade pisoteada, metade pisoteante."

Que nem disse o cara em cima: do caralho!

http://anpulheta.blogspot.com

Alcione Torres disse...

Eu sou uma dessas pessoas que se incomoda e nem sempre me entendem...

Anônimo disse...

A diferenca de reclamar e ser chato eh sutil ...
O problema eh saber ponderar esses dois extremos tao proximos ...
Comparado com outros paises ... realmente o brasileiro nao sabe reclamar. Muitas vezes somos chatos por nao ter argumentos ou simplesmente por mah educacao ...

Dah uma passada no meu blog: ArtCulando

http://artculando.wordpress.com

=)

Anônimo disse...

Maravilhoso texto!!!

Isso é o que bem vemos... Uma pena. Incomodados são apenas incomodados sem "motivo". Acho que é isso que pensam. Eu me incomodo muito com isso, e muita gente se incomoda por eu me incomodar e questionar =/

Vai entender, né?!!



http://agarotapsicose.blogspot.com/2010/06/sobre-vida.html

Anônimo disse...

isso mostra a incapacidade quando o pensamento é mudar o mundo... não adianta querer se o resto do mundo não dá a minima. Os trovadores se calam.