24 de abr. de 2010

Libertos e agiotas

A chuva que torturou Rio de Janeiro e Niterói já foi há algumas semanas, e as cidades – que jeito? – seguem adiante. O morro do Bumba evaporou dos noticiários. Políticos já estocaram no freezer as urgências que desaparecem em dias de sol, e só voltarão a existir na “surpresa” da próxima enchente. Brasileiros que somos, varremos a lama (literal e figurada), suspiramos e prosseguimos, com o para-brisa limpo o suficiente para andarmos mais alguns metros. Mas a chuva continua por aí – chovendo metáforas e consequências.
Meu caso, por exemplo. Naquela terça-feira de manhã, cheguei ao trabalho com a água pelos joelhos. Por que não fiquei em casa? Porque, simplesmente, não sabia do apocalipse. Com tevê e rádio desligados, confiei no que via pela janela: uma chuva aparentemente normal, como tantas outras. Do outro lado do metrô, ela não era como tantas outras. E aí já era tarde. Por pura desinformação, fui a única professora a conseguir chegar à escola, além da própria diretora.
Fiquei, depois, matutando a situação. Sei bem que não foi exclusivamente por falta de notícias que apareci por lá naquele dia. Muitíssimo menos por amor ao serviço ou preocupação com a diretora, com os alunos, com quem quer que seja. Apareci na escola por total incapacidade de faltar – exatamente como quando era eu a aluna e, mesmo sem estar a fim de assistir às aulas, não queria ter mais trabalho após a falta, nem queria precisar “catar” algum caderno com a matéria completa. Apareci na escola pelo mesmo motivo de sempre: por mim. Já que não tinha ideia completa do caos, queria mostrar que, ainda numa situação tão adversa, eu seria capaz de tudo para estar presente. Eu seria a funcionária mais comprometida possível. E para que mostrar isso? Elementar: para ter uma espécie de “bônus” a ser usado quando eu realmente precisasse me ausentar. O lado mais egoísta da responsabilidade.
Não é raro agirmos assim: ficarmos obcecados em ser sempre credores e nunca devedores; construirmos uma piscina de bônus inesgotáveis e nadar neles todos os dias, como o Tio Patinhas em suas riquezas – sem jamais gastá-los. Sermos, enfim, agiotas familiares, profissionais, emocionais, sentimentais: emprestadores de boas ações, mas sob altos juros. Nem sempre esse tipo de “agiota”, porém, quer que a dívida seja paga em novos favores; basta-lhe, às vezes, a eterna culpa e gratidão dos beneficiados, espécie de algema invisível. O maior senão é que o “agiota”, acostumado a converter relações em transações, nunca estará preparado para elogios, auxílios ou afetos gratuitos, uma vez que não poderá merecer o que não segue a lógica do merecimento. Nunca poderá pagar o valor do que não tem preço. A fortuna de um agiota emocional é feita apenas de promissórias; se receber, em gratuidade, muito mais do que é capaz de oferecer, seu coração acaba entrando em choque e abrindo falência.
O oposto dos agiotas emocionais são os libertos – aqueles que estão realmente livres de culpas e conseguem, portanto, receber e doar com a mesma naturalidade e alegria. Ainda usando a situação das chuvas, temos exemplos de libertos naquelas pessoas que não hesitam em largar o trabalho (ou os filhos, ou a faxina, ou o controle remoto) no momento em que percebem que alguém tem de ajudar a separar as doações que chegam para as vítimas das enchentes. Libertos são aqueles que perguntam “por que não eu?” e descartam todas as desculpas que conseguem criar como resposta. Libertos têm exata noção de seu próprio valor: exatamente o mesmo que o de todos os outros. Liberta é algo que eu serei um dia – espero que breve –, quando já não me preocuparei em fazer bonito e preferirei fazer o necessário, o urgente, o imperativo. Porque ficar cuidando só de sua própria vida é coisa de quem não tem mais o que fazer.

15 comentários:

Unknown disse...

Legaaal.. gostei, bem interessanteee =) Bjoos

Macaco Pipi disse...

cara
depois a gente nao sabe pq acontece
EHAHAEHAE

indivídua disse...

teu texto ultrapassa a simples política... ele é filosofia

Wander Veroni Maia disse...

Oi Fernanda!

O Paulo Coelho, que muitas pessoas não gostam, fala sobre isso: o banco de favores. Se for usado para o bem, é uma maneira correta de estarmos ligados ao outro, sem necessariamente, ter o fim aproveitador. É aquela história, uma lava a outra. Não se sinta egoísta com isso...pensar em vc é ter amor próprio...o que é extremamente necessário.

Abraço,

http://cafecomnoticias.blogspot.com

Angélica Nunes disse...

Idem Pipi! XD

Vinícius disse...

Hum... legal o texto :)

http://manoloLoko.blogspot.com

Pedro Henrique disse...

muito bom o seu pensamento, realmente adorei!

E eu acho que o mundo realmente precisa de mais pessoas libertas, para o bem de todos.

http://thefoxtimes.blogspot.com

Lucca disse...

Triste retrato da realidade.
E assim a banda segue esperando os próximos carnavais...

Felipe disse...

Não se preocupe, você é normal, assim como o Wander falou em comentario anterior.
o 'Liberto' nada mais é que um 'agiota' evoluido. Pena que existem outrs tipos de 'agitas' além do que você citou.

╝LuCaS╚ disse...

Legal, vc filosofa muito bem
www.ciadohumor.co.cc

Anônimo disse...

é, muito triste o que aconteceu lá. todos devem ajudar um ao outro

Macaco Pipi disse...

essa putaria tem q ser combatida :D

pris disse...

Todos temos que lutar, p/ que descasos como esse ñ aconteçam a união faz a força!!!!!!!!!!!!

Marcos Costa Melo disse...

Vixi... me identifiquei com o texto...melhor nem aprofundar...abs

Daniel Silva disse...

desculpe fugir completamente do assunto, mas que saudade do tio patinha e dos duck tales! não se fazem mais desenhos como antigamente!

abraço