21 de set. de 2008

Mire e veja

Eu podia falar muita coisa depois de ter visto o novo longa de Fernando Meirelles, Ensaio sobre a cegueira, baseado na obra homônima de José Saramago. Podia falar do filme em si: da câmera que exibe um foco incerto, dos enquadramentos assimétricos, da fotografia branca que nos mergulha num "mar de leite"; do modo preciso com que a edição apresenta os personagens e retrata a passagem do tempo; do ótimo elenco, que não nos deixa esquecer em nenhum momento que estamos apenas diante de pessoas e de seus extremos; da enorme fidelidade do roteiro aos fatos e ao espírito do livro.

Podia falar do tempo em que li o romance (quando ainda cursava a faculdade de Letras), de como achei aquela estória ironicamente tão visual, de como me deu vontade de filmá-la, se eu fosse um cineasta. Me lembro muito bem do dia em que terminei de ler o livro e comentei com os amigos mais próximos: "Nossa, se eu tivesse que escolher um romance pra adaptar pro cinema, seria esse!". Ainda cheguei a descrever como seria a última cena. (E não é que o Fernando a fez igualzinha?)

Também podia não falar nada disso e apenas reproduzir um certo poema de Augusto dos Anjos, intitulado "O morcego", que, sabe-se lá por quê, veio muito a calhar:

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
– Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Mas o que eu podia falar diante de um flagrante tão feliz, coisa de minuto e meio, que mostra a reação de Saramago ao ver o seu Ensaio na telona pela primeira vez, durante uma exibição em Lisboa? É ou não é ultra-emocionante?

16 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, Fábio, eu assisti ao filme ontem, é maravilhooooso!! O vídeo do Saramago é realmente ultra-emocionante.
Uma coisa me deixou surpresa: o cinema estava consideravelmente cheio para um filme como este. Surpresa boa.
E ao vê-lo, me lembrei das aulas de teoria literária, do mito da caverna etc etc. Lindo lindo!! E, nestas horas, é fácil dizer porque amo tanto literatura, ou melhor, nestas horas não é preciso dizer nada.
O filme é inspirador!

Anônimo disse...

Minha relação com o Saramago não é muito de preferência literária, mas de referência "histórica": algumas de suas tramas despontuadas pontuaram os tempos de faculdade. O "Ensaio" foi uma delas. Foi uma coincidência feliz assistir ao filme exatamente no aniversário de seis anos de nossa formatura. Saí satisfeitíssima com a adaptação pro cinema, pensando que, se fosse eu a autora do livro, não poderia querer releitura melhor na telona. É o sonho de um escritor ver seu livro tão bem retratado assim. Guardadas as devidas proporções, o enredo tem até um certo parentesco com "O nevoeiro" -- só que, desta vez, a "verdade" não está "lá fora", mas dentro do "quarto", como no poema do Augusto. Em vez de gente trancada num supermercado isolado, com um mar branquinho atrás da porta de vidro, é gente trancada em si mesma, com esse mesmo mar nos olhos. E, trazendo o "nevoeiro" pra dentro de cada um, é muitíssimo maior a rapidez com que os personagens chegam ao estado máximo de degradação e primitivismo. O soneto do Augusto retrata primorosamente a relação entre os dois filmes: quanto mais "dentro do quarto" a gente está -- mais isolado, trancado, ignorante, aferrolhado --, mais feio o morcego surge. E, neste caso dos filmes, o voador não é a consciência, mas a burrice (ou o estado mais grosseiro possível). Quanto mais próxima e maior a ignorância, mais ligeirinho a gente se transforma em bicho perigoso. Muito mais perigoso do que aqueles que estão dentro do "nevoeiro". O que, no caso do "Ensaio", são todos os outros.

Anônimo disse...

Buá eu ainda não assitir esse filme :(
Eu tenho que verrrrr

Bruno Vigatto disse...

eu ainda não assisti esse filme também meu =/

deve ser muito bom ...

abraço

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www.bruninhoolemon.blogspot.com

Tiago Castelo disse...

Retrinuindo comentário...
Fábio. Fábio é seu nome, suponho.
Com certeza é emocionante ver a reação de José Sramago ao assistir o longa. Me impressiona também o "flagrante". Na verdade ainda não assisti o filme - espero assistir logo! - mas tenho um costume - digamos assim - de ler as obras literárias de tal filme antes de assistí-lo, mas definitivamente não sei se aguento esperar não.
Augustos dos Anjos... Nossa, não fazia idéia do quão bons eram os poemas dele. Tenho uma grande amiga - Maria Rita o nome dela - que me indicou um livro de poemas do mesmo. Com certeza vou procurar ler mais desses!
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E quanto o comentário deixado no meu blog...
Realmente foi de grande valia seu comentário. Pensar na hipótese de que há coisas em mim que ele não goste me fez exergar - lembrar - de algumas que poderiam cair na lista. No mais, meus parabéns pelo blog e pela postagem. Excelentes!

Anônimo disse...

Puxa, eu ainda não vi o filme...
Mas pelo jeito é um filme nacional falado em inglês, sei lá, tenho preconceito com diretores brasileiros, enfim, o filme é a "bola da vez" e pra não ficar sem assunto vou aproveitar a meia entrada amanhã e assistir!
Bjinhus

Anônimo disse...

Impressionante esse vídeo bem como seu texto.
Um grande abraço!

Maranganha Abilolado disse...

O ideal é perder o foco da vida um pouco, para enxergar perto e longe ao mesmo tempo.

Bruno C. disse...

tbm tenho que ver isso!!

boaa

blog disse...

Embora eu curta alguns portugueses - Torga, Branquinho da Fonseca e, claro, Eça -, sempre achei Saramago chato. Exceção para "Memorial do Convento" e "Lavantado do Chão", livros que consumi ém meados dos 80 com certa avidez, mas desconfiando de que a narrativa não me surpreenderia.
hoje não leio mais, mas assistirei ao filme, claro. Falta tempo.
E Augusto dos Anjos, bem, é dos meus preferidos.
Gostei da postagem e de sua linguagem.
Emotiva, mas contida.

Chris Marques disse...

Perfeito! Tenso! Maravilhoso!

Não sei qual adjetivo escolher para esse filme. Desde que soube que o Fernando Meirelles iria "filmar o livro", fiquei aguardando ansiosamente, pois havia lido o romance (infelizmente não foi uma leitura obrigatória da faculdade de Letras, o que, com certeza iria enriquecer a leitura, mas foi um livro que li "por fora", como tantos outros) e fiquei apaixonada pela história.

Olha, também tenho que dizer que o filme abaixo é muito divertido! Sabe, meu "caso" com o Pierce Brosnan é antigo, desde mil novecentos e "Uma babá quase perfeita" e foi esse o motivo pelo qual fui assistir "Mamma mmia!" Bem, graças a ele, comecei a achar que o Pierce não deveria cantar em público, mas isso é uma outra história... ah, e só as imagens da Grécia já valem o ingresso!

Marcus Alencar disse...

Já escrevi uma resenha sobre o livro dele na época de faculdade de jornalismo, se vc quiser, depois eu te passo, é só falar, até já publiquei no meu blog quando ele estava no outro provedor, em breve publico nesse, depois de ver o filme é claro.

Imagino como deva ter sido a reação dele ao ver o filme (ainda não o vi, mas morro de vontade) que ele mesmo barrou a oportunidade deste nascer quando outros cineastas tentaram. Meireles foi um sortudo mas também é competente, aposto que vou gostar, acho que é apenas intuição...ou seria otimismo brasileiro? rsrs

Ah, muito pertinente o poema escolhido.

vamos manter contato? vou te add no orkut, gostei muito do seu blog...

Erich Pontoldio disse...

Preciso ver esse filme ... o próprio Saramago ficou sem palavras e muito emocionado.

Anônimo disse...

Estou louco para assistir esse filme! Aliás, acho que o Festival de Cinema do Rio esse ano vai arrebentar!

Se sobrar um tempinho, conheça também o meu blog: valacomum.wordpress.com

Abraço,

David.

Edu França disse...

É realmente um livro marcante e imagético, ainda não vi o filme, mas cada dia cresce a vontade. bjs

All3X disse...

Preciso muito ver esse filme, não quero ficar fora do assunto. Tenho que me interar do que foi feito...