
Há uma palavra-chave para entrar na sintonia de
Avatar: conexão. Definitivamente, um filme de conexões. A começar pela própria compra do ingresso – que, pela primeira vez, fizemos pela internet, já que todas as sessões legendadas 3D se esgotavam antes que conseguíssemos visitar Pandora. À parte essa pequena coincidência inicial, cada partícula da obra (aliás, do monumento) de James Cameron mostra uma face do
conectar-se. O longa em si já é um surpreendente entrelaçamento de
Pocahontas com
Matrix, e destaca justamente as conexões que são privilegiadas nesses dois filmes: homem-natureza e homem-máquina, respectivamente. Como numa raiz de árvore, feixe de neurônios ou engrenagem de fábrica, desse eixo central parte uma infinidade de relações secundárias, num tecido orgânico e harmonioso: a conexão da criatura com o criador, de um membro da comunidade com o outro, de um gêmeo com o outro, de uma espécie com a outra, de uma língua com a outra, do amante com o amado, do racional com o irracional, do vivente com o antepassado, do sonho com a práxis, do sono com a consciência, da ciência com o objeto de estudo, do dever com a ética, do humano com o diferente, do homem com o animal, do homem com o corpo, do corpo com a vontade, da limitação com a liberdade. Quase todas as ligações do mundo cabem numa sessão de
Avatar. Durante e depois: o que é puro deslumbre para os olhos vira alimento inesgotável para os neurônios.
A conexão pelos olhos – de um ser com o outro e do homem com o mundo – é, por si só, tema recorrente no filme, da primeira à última cena. Além de os constantes “nasceres” estarem representados nos movimentos de pálpebras e pupilas, o namastê da raça na’vi se traduz na frase “I see you” (“Eu vejo você”). Não é o distraído “See you” que se diz numa despedida à americana: é o ver do encontro, o ver de parar para ver; o ver de admirar, compreender e reconhecer o reflexo da divindade no olhar alheio. E é lindo constatar como a relação afinada e íntima entre todos os seres, tão decantada em qualquer ecomovie (“Nós somos tão ligados uns aos outros/ neste arco, neste círculo sem fim”, já dizia Pocahontas), ganhou belíssima tradução visual nas tranças dos na’vi – que literalmente “plugam” nos animais, na terra, nos ramos da árvore sagrada que recebe suas orações. Difícil não se lembrar da energia vital dos cabelos de Sansão. Mas é mais lindo ainda perceber o quanto essas conexões naturais, orgânicas, são superiores em força e duração àquelas realizadas entre homem e traquitanas eletrônicas, interrompidas com um mero corte de eletricidade, um simples ato de truculência. As oposições de Avatar são óbvias e antigas, sem que por isso soem batidas – o apolíneo contra o telúrico, o patriarcado contra o matriarcado, o metal contra a terra. Papo velho, cara nova: muito além de um povo “primitivo” que se conecta ao planeta, os na’vi são o planeta – em sua própria carne são azuis como a Terra, nosso planeta de nome e alma tão femininos quanto a metafórica Pandora.
É interessante o fato de que, diferentemente do que acontece em Matrix, o avatar do “escolhido” Jake Sully também é sua própria carne, e não um simples holograma. Enquanto Neo se projeta num reino de mentira e assepsia, Jake vive mais plenamente através de um segundo corpo, mais conectado à sua mente do que o original (neste, afinal, suas pernas e sua coluna estão “desplugadas”). Ao contrário dos contratantes de Jake, os quais desejam de Pandora o que ela não lhes pode dar – o metal unobtanium, que até no nome simboliza o que não pode ser obtido –, o protagonista faz ao Planeta-Mãe o pedido certo, a liberdade mental e física que lhe faltava. Ecos de Pocahontas: “Você só vai conseguir/ desta terra usufruir/ se com as cores do vento colorir...”. Apenas com a disposição de ligar-se, e não de romper, é possível conseguir do planeta (qualquer um) a resposta correta; não os males que saíram da caixa da mítica Pandora, e sim a única coisa que nela ficou guardada: a esperança.