31 de ago. de 2010

Feitiço do tempo

Comprei no sebo um voluminho de contos de Otto Lara Resende (professores adoram livros de contos, para os quais sempre têm intenções perversas). A edição, de 1992, principia por uma entrevista com o autor. Na última pergunta, o entrevistador se anima: “Em 1992, você comemora 40 anos de vida literária desde o seu primeiro livro, O lado humano (contos). Como se sente?”. A resposta é daquelas que ficam ecoando no cérebro: “[...] Como me sinto? Profundamente irrealizado, com um gosto terrível de incompletação e uma tremenda vontade de me reinaugurar. De começar. Há um velho em mim que não sou eu”.
Há um velho em mim que não sou eu. Realmente. Tem síntese melhor para o fato de não sermos culpados do número de dias que já vivemos? Há uma mulher de trinta anos em mim, por exemplo, que não sou eu. Posso ter respirado pela primeira vez na mesma data, até na mesma hora que muitas outras mulheres de trinta anos, mas algumas destas talvez já estejam com quarenta, cinquenta e cinco, sessenta e oito. Quem sabe começaram a se virar na adolescência, trabalharam no sol, não estudaram, estudaram pouco, pariram muito, foram exploradas por sete homens consecutivos, ficaram doentes, cuidaram de filhos ou pais doentes. Têm milênios de vida. Outras, talvez, andem ainda pelos quinze ou dezesseis aninhos, deslumbradas unicamente consigo mesmas e com o cheque especial. Uma outra leva dessas mulheres tem realmente trinta anos: são mães (ou planejam ser), são chefes de algum setor (ou planejam ser), são circenses que equilibram casa-marido-trabalho-pais-filhos com um chicote na mão direita e uma Marie Claire na esquerda. Todas viveram a mesma quantidade de rotações da Terra, mas cada qual em torno de um eixo. Número igual, durações diferentes. Nenhuma dessas mulheres de trinta sou eu.
Eu, de verdade, não cheguei ainda aos trinta. Estou há anos presa num moroso limbo pós-vinte, alegre e preocupado, expectante, ansiosamente tranquilo, sempre com ares de véspera. Não há mais adolescência – cheia de planos vaporosos –, mas a infância ainda existe de se pegar; seus cheiros e memórias estão a um esticar de braço. E o futuro não parece definitivamente instalado. Apesar do trabalho que detesto, corre um ventinho esperançoso de talvez-um-dia, uma seiva de fluidez que lubrifica os sonhos. Presumo que o ventinho sempre correrá. Para o bem ou para o mal, não me vejo mudando de mala e cuia para dentro de uma idade que não seja a minha. Não me faço nem mais nem menos realizada do que sou para atender a um número que dizem corresponder-me.
Nós nos habitamos (ou deveríamos habitar-nos) cada um a seu modo. Desconfio até que podemos ter, confortavelmente, uma linha do tempo distinta em cada cômodo de nós mesmos. Profissionalmente, tenho centenas de anos por um lado – porque cada aula dada a adolescentes malcriados pesa como décadas – e menos de duas dúzias por outro – já que a ideia de começar, reinaugurar-me em melhor caminho, nunca vai embora. Sentimentalmente, tenho a serenidade de amar como uma mulher de trinta e muitas experiências – e o ocasional frio na barriga de quem começou há dezepoucos dias. Jamais acreditei que eu não tenha sido respingada, sem querer, fora do século XIX, porém não sobreviveria sem as facilidades do XXI. Amo as possibilidades de nosso tempo; odeio suas urgências. Reservo-me, pois, o direito de reinar absolutista sobre a página da folhinha onde vou morar, o direito de pousar no livro de estória ou História que me aprouver. Não me venham com Balzac, estou com Luís XIV e não abro. O calendário sou eu.

26 comentários:

TH disse...

Há tantas coisas que não aceitamos em nosssa saga...o passar (e pesar) dos dias, culminando com nossa velhice é uma delas.
Tambem caminho pros 30, achando minha vida tão boba e cheia de irrealizações, apesar de ter acertado em tantos pontos...
No fim, a gente tem essa coisa de insatisfação garantida quase sempre, ainda que estejamos "d ebarriga cheia".
Grande blog
:)

www.enthulho.blogspot.com

Gabriel Pozzi disse...

mais um grande texto desse blog, talvez meu preferido até o momento!
sabe que gosto dessa história de que "todos vivemos a mesma quantidade de rotação da Terra, mas cada qual em seu eixo"? gosto de, em algum lugar movimentado como a av.paulista, olhar para as pessoas e imaginarem em qual eixo estão. qual motivo as levaram até ali. qual preocupação está tomando espaço na cabeça delas.
isso pode ser divertido!

quanto à idade, não sei exatamente se vivo pelos meus 18 anos, mas me equilibro entre uma criança que só quer diversão e um adulto que trabalha e tem todas suas responsabilidades.

http://songsweetsong.blogspot.com/

Lari disse...

Muito, muito, muito bom! Sempre me senti assim, meio fora da minha idade!

Muito bom mesmo!

Passa no meu: www.lari-landia.blogspot.com

Beijos!

Pensamentos á toa disse...

Blog legal :)

Renato Ziggy disse...

Adorei a fluência da escrita, e a forma como vc expõe suas idéias. E achei muito interessante a forma como vc trata a questão da maturidade que temos e como isso reverbera na forma como lidamos com nossa subjetividade e com o meio circundante. Sem dúvidas, cada um tem seu jeito, sua unicidade. E isso é interessante, histórico, cultural, social e sei lá mais o quê. Isso é gente. E gente é coisa demais, história demais... Beijo!

Pedro Prado disse...

Um texto maravilhoso.

Acho que quase todos ficam na inconstância, entre o jovem e o novo, mas ai chega uma determinada época que temos que crescer, adquirir responsabilidades, viver a vida real.
Mas não são todos que crescem por completo, sempre fica aquela criança que uma hora escapa e depois volta pro seu sono, assim como o velhinho conselheiro que ajuda, consola.

Eu tenho estado em um estado de infância, quero atenção, cuidado toda hora.


=)

Pablo Villaça disse...

Recebi esse texto por email não sei por que motivo. Normalmente, apago sem ler - no entanto, passei os olhos pela frase inicial e fui fisgado. Como alguém que trabalha com escrita, senti-me na obrigação de vir aqui e elogiar. Mais: dizer que a autora é dona de um talento invejável.

Adoro gente que sabe escrever. ;)

PENHA''' disse...

Também me sinto assim, sabe, as pessoas da minha idade são muito diferentes de mim, acabo me sentindo um pouco perdida ;s

C. Lopo disse...

Gostei mto do texto... É incrível como o tempo transforma a imagem q temos de nós mesmos... acho q a gente sempre vê uma certa idade mto longe (como os 30 anos) e qndo chegam a gente não se sente com aquela idade... Acho q é por isso q temos a sensação de q a vida passa tão rápido... enfim, já filosofei d+, Parabens pelo blog! Abraço!

www.brincandodefazerpiada.blogspot.com

... disse...

Muitooo bom....


Beijos!!
http://entrelinnhas.blogspot.com/

Diva Déa disse...

Muito legal, Fernandinha! Que bom saber que alguém se sente como eu... No meu caso, sou uma balzaca ainda com 20 ou 22, no máximo. Até bem pouco tempo era 17, mas a ampulheta correu um pouquinho, hehehe.

Emilia Vaz disse...

Faço minha as palavras de Pablo Villaça aí acima.O bom da internet é isso,às vezes damos sorte de encontrar pessoas com mentes tão brilhantes como a sua numa comunidade qualquer do orkut.
Parabéns querida,você colocou bem os anseios, dúvidas e certezas de seus trinta.Espero os quarenta e fará novas e surpreendentes descobertas.
Beijo no coração

Emilia Vaz disse...

Tem um presente p vc no blog
Espero que goste.
Bjbj

Wellington disse...

Olá, sou Well do NeoWellBlog! Seu blog foi indicado ao selo Beautiful Blogger! Acesse o link abaixo para pegar seu selo!

http://neowellblog.wordpress.com/super-blogs/selos/

Parabéns e sucesso! =)

Marcus Alencar disse...

Oi, sou Marcus, do Olhar Receptor. Seu blog foi indicado para o selo Blogueiro Show. Acesse o link abaixo para pegar o selo
http://olhareceptor.blogspot.com/2010/12/selo-blogueiro-show.html
grande abraço

Marcus Alencar disse...

As vezes gosto de tentar pensar que o tempo não é visto de forma linear que é possivel, mesmo em sonhar, ver tudo de uma vez o que foi, é e o que será, assim para evitar que o futuro não seja cheio de arrependimentos por conta de sonhos não realizados. Mas também isso é um sci-fi, rs.
Belo post, adorei a reflexão sua, me identifiquei com ela.

Aproveitando a deixa, gostaria de avisar que tem selos pra você no meu blog.

Grande abraço

Felipe Matula disse...

O calendário sou eu....frase perfeita pra fechar o seu texto. Acho que alguns já se sentiram como você, as vezes acho que não faço parte desse mundo...

www.feriasdopresidente.blogspot.com

Emerson Teixeira Lima disse...

Olá sou emerson teixera e quero lhe Parabenizar pelo blog e dizer que já estou seguindo.... a partir de hoje estarei sempre aqui...
Tenho um blog também segue lá?
http://maniaccine.blogspot.com/

Um brasileiro disse...

ola. tudo blz? dei uma passada por aqui. muito legal. apareça por la. abraços.

Unknown disse...

Seu blogger é bem da hora cara e vc é muito gente boa volte sempre no meu valeuu !!vou seguir vc com certeza
http://cliques-diversos.blogspot.com.br/

Aline disse...

Bela reflexão...O segredo é romper essa barreira do tempo e fazer de si o que se quer, o que se busca, e não apenas marcas em calendários...

Aline disse...

E aí está a diferença entre tempo-idade e tempo-experiência...

Unknown disse...

Habitar-nos ... disse tudo ... qdo nos conhecemos melhor a vida fica mais fácil de lidar, porém não menos complicada de caminhar...amei o texto ...avassalador!!!

http://alternativassonoras.blogspot.com.br/

Danilo Moreira disse...

Esse post me lembrou quando eu tinha 18 anos e me achava velho rsrsrs Hoje aos 27 dou risada disso. Pra falar a verdade, até me sinto muito mais jovem do que na época dos 18. É questão de pensamento e atitude mesmo.

Obrigado pelo comentário no meu blog. Parabéns!

Abçs
Danilo
http://blogpontotres.blogspot.com.br/

Antônio disse...

eu uso como referencia a sensação de crescimento e amadurecimento para "sentir a real idade que tenho". pra mim, a maturidade e sabedoria é o que me distingue do que eu era há um dia, ou um ano, uma década. eu tento buscar satisfação desde que percebi que, pra viver uma vida à parte da idade, é preciso maturidade de aceitar as coisas como são (e pra aceitá-las, vc precisa de maturidade, o que é alcançada atraves da idade). então, pra mim, envelhecer eh um sinal positivo.

valew por comentar no meu blog. sucesso!

Claudio Chamun disse...

Acho a idade tão relativa.
Ela pode até limitar o corpo, mas não a mente. Isto é a gente mesmo que limita ou não.
Eu já passei dos trinta faz muito tempo e me sinto jovem. É..tá bom, menos, mas me sinto bem e é isto que importa.