Desde criança, gosto de sentir o cheiro do que estou lendo. Das páginas compradas em sebo ou do livro zerinho, recém-saído da megastore. Da gramática, da lista telefônica e até da prova de vestibular. Distingo facilmente a Cláudia da Marie Claire, O Globo do Jornal do Brasil, apenas pelo aroma de folha e tinta. Loucura? Coerência, eu diria. Como todos sabem, nosso álbum afetivo é composto especialmente por pecinhas olfativas – e alguém que fez Letras não poderia guardar perfumices somente em frasquinhos de vidro. Fico, pois, um bocadinho órfã ao saber que uma página desse álbum será arrancada. Em breve, muito breve, não terei mais o aroma de folha e tinta do Jornal do Brasil: jornaleiros amigos já soltaram a nota de seu futuro falecimento.
Perder o Jotabê é como ver morrer um estado do país, presenciar a demolição de um monumento ou a falência, sei lá, da Coca-Cola (embora eu não goste de coca-cola). O Jotabê é coisa que não está: é – ou deveria continuar a ser. Durante algum tempo, fomos assinantes do bichinho, então parte das manhãs de minha infância foi tão embalada pelos quadrinhos do Caderno B quanto pela música de Cavalo de Fogo. Nos fins de semana, revista Domingo: eu lia – sem entender absolutamente nada – as colunas gastronômicas do Apicius, me divertia com as crônicas do (hoje global) Verissimo, me irritava com as bobagens de Tutty Vasques, me intrigava com os filmes anunciados nas páginas em preto e branco – sim, a Domingo tinha páginas em preto e branco, depois transferidas para a revista Programa das sextas-feiras.
Mesmo após largarmos a assinatura, acompanhei a eleição da “Musa do Verão” de vários anos, a contagem regressiva para a Domingo de número mil, as inteligências do caderno Ideias, o nascimento da Programa como hoje a conhecemos, cada transformação no design da minha querida revista de sexta – da qual me tornei dependente. Eu e minha irmã. Chegamos ao cúmulo de, morando na mesma casa, comprarmos dois Jotabês a cada sexta-feira, só para cada uma ter a sua Programa. A minha eu não amasso, não dobro, quase não carrego na pasta: conservo protegida, aninhada dentro do jornal em que ela veio, até a edição seguinte. Por que dentro do jornal? Para que ela não perca seu cheiro característico, o aroma de Jotabê que eu, maluca, preciso que ela tenha.
Quando o Jornal do Brasil enxugou as formas, colocando-se em tamanho de tabloide, soou o alerta: economia de papel. Percebi que a coisa andava feia, mas não queria acreditar que meu amigo velho de guerra perderia a batalha. Infelizmente, perdeu. Perdeu para as nojices compradas a 50 centavos, os arremedos de jornal sem cheiro de infância, com gosto salgadinho de sangue. Não digo que tenha perdido para O Globo, porque este foi sempre um digno (e cada vez melhor) vencedor. Perdeu, sim, para a ignorância e a preguiça em sua pior espécie, a leitura acomodada, o sensacionalismo marrom. Sempre os houve, mas sempre houve também quem esperasse mais do que a notícia (e a não notícia) pingada nos olhos a conta-gotas, previamente mastigada. Não há mais. Pelo menos, não há quorum suficiente no Rio de Janeiro para mais de um jornal – que faça jus ao nome.
Acabou o Jotabê impresso. Agora, só cristalizado na internet, preso num aquário virtual sem aroma de folha e tinta. Acabou uma era longa e bonita, começada em 1891. Que venham os fins de semana sem Domingo, as sextas-feiras sem Programa. E um país progressivamente sem Ideias.