Comprei no sebo um voluminho de contos de Otto Lara Resende (professores adoram livros de contos, para os quais sempre têm intenções perversas). A edição, de 1992, principia por uma entrevista com o autor. Na última pergunta, o entrevistador se anima: “Em 1992, você comemora 40 anos de vida literária desde o seu primeiro livro, O lado humano (contos). Como se sente?”. A resposta é daquelas que ficam ecoando no cérebro: “[...] Como me sinto? Profundamente irrealizado, com um gosto terrível de incompletação e uma tremenda vontade de me reinaugurar. De começar. Há um velho em mim que não sou eu”.
Há um velho em mim que não sou eu. Realmente. Tem síntese melhor para o fato de não sermos culpados do número de dias que já vivemos? Há uma mulher de trinta anos em mim, por exemplo, que não sou eu. Posso ter respirado pela primeira vez na mesma data, até na mesma hora que muitas outras mulheres de trinta anos, mas algumas destas talvez já estejam com quarenta, cinquenta e cinco, sessenta e oito. Quem sabe começaram a se virar na adolescência, trabalharam no sol, não estudaram, estudaram pouco, pariram muito, foram exploradas por sete homens consecutivos, ficaram doentes, cuidaram de filhos ou pais doentes. Têm milênios de vida. Outras, talvez, andem ainda pelos quinze ou dezesseis aninhos, deslumbradas unicamente consigo mesmas e com o cheque especial. Uma outra leva dessas mulheres tem realmente trinta anos: são mães (ou planejam ser), são chefes de algum setor (ou planejam ser), são circenses que equilibram casa-marido-trabalho-pais-filhos com um chicote na mão direita e uma Marie Claire na esquerda. Todas viveram a mesma quantidade de rotações da Terra, mas cada qual em torno de um eixo. Número igual, durações diferentes. Nenhuma dessas mulheres de trinta sou eu.
Eu, de verdade, não cheguei ainda aos trinta. Estou há anos presa num moroso limbo pós-vinte, alegre e preocupado, expectante, ansiosamente tranquilo, sempre com ares de véspera. Não há mais adolescência – cheia de planos vaporosos –, mas a infância ainda existe de se pegar; seus cheiros e memórias estão a um esticar de braço. E o futuro não parece definitivamente instalado. Apesar do trabalho que detesto, corre um ventinho esperançoso de talvez-um-dia, uma seiva de fluidez que lubrifica os sonhos. Presumo que o ventinho sempre correrá. Para o bem ou para o mal, não me vejo mudando de mala e cuia para dentro de uma idade que não seja a minha. Não me faço nem mais nem menos realizada do que sou para atender a um número que dizem corresponder-me.
Nós nos habitamos (ou deveríamos habitar-nos) cada um a seu modo. Desconfio até que podemos ter, confortavelmente, uma linha do tempo distinta em cada cômodo de nós mesmos. Profissionalmente, tenho centenas de anos por um lado – porque cada aula dada a adolescentes malcriados pesa como décadas – e menos de duas dúzias por outro – já que a ideia de começar, reinaugurar-me em melhor caminho, nunca vai embora. Sentimentalmente, tenho a serenidade de amar como uma mulher de trinta e muitas experiências – e o ocasional frio na barriga de quem começou há dezepoucos dias. Jamais acreditei que eu não tenha sido respingada, sem querer, fora do século XIX, porém não sobreviveria sem as facilidades do XXI. Amo as possibilidades de nosso tempo; odeio suas urgências. Reservo-me, pois, o direito de reinar absolutista sobre a página da folhinha onde vou morar, o direito de pousar no livro de estória ou História que me aprouver. Não me venham com Balzac, estou com Luís XIV e não abro. O calendário sou eu.